Magistrada ressalta a importância dessa conquista “impensável” — uma menina pobre chegar ao topo da Justiça Eleitoral. 17ª filha de uma família de 20 irmãos, começou com empacotadora de supermercado e construiu carreira como advogada e professora
10/08/2023
Primeira mulher negra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a ministra substituta Edilene Lobo tem uma relação com o direito cuja base é a própria história de vida. Mineira de Taiobeiras, é 17ª de uma família de 20 filhos. Começou a trabalhar poucos antes de completar 14 anos, como empacotadora num supermercado de Betim (MG). Mas, desde cedo, entendeu que os estudos seriam o único caminho para uma vida melhor. Conciliando o escritório profissional com a carreira acadêmica, Edilene cursou e lecionou em diversas universidades, aqui e no exterior. A mais recente experiência foi na Sorbonne-Nouvelle Paris III como professora convidada do mestrado II de ciências sociais — lecionou sobre direitos políticos, eleições, democracia e milícias digitais na América Latina. Ao refletir sobre o significado da chegada ao TSE, a ministra considera que “o Judiciário brasileiro precisa contar com a diversidade, até para que as meninas, as Edilenes, as Cidas, as Marias de qualquer cidade possam ver que cabemos neste espaço”. A seguir, leia o ponto a ponto com a ministra.
Origem e trajetória
Sou a 17ª filha de uma família muito pobre, do Norte de Minas. Comecei a leitura da realidade social e do mundo da política entre os 14, 15 anos. Meu primeiro emprego foi como empacotadora num supermercado. Comecei a trabalhar cedo, ao mesmo tempo em que estudava em escolas públicas, onde conheci pessoas maravilhosas, mulheres em especial — que me estimularam a me colocar na cena, me despertaram para o mundo da política estudantil e sindical. Percebi que era fundamental compreender o mundo do direito, que aparece na minha vida quase que como um prolongamento do meu olhar para o lugar de onde vim.
Atuação
As mulheres negras estão no final da fila. São as mais pobres dentre os pobres, são as mais discriminadas dentro do gênero, têm os piores empregos e os piores salários. Gostaria de dizer para aquela menina pobre lá de Taiobeiras, e para tantas outras Edilenes por este Brasil sonhando com oportunidades, chegar a este momento, com esta missão, era algo impensável. Quando agora olho para aquela menina lá atrás, vejo a importância de que ela possa estar aqui. Nós vivemos de referências. A primeira importância é estética: a fotografia da sociedade brasileira e a do Judiciário brasileiro precisam contar com a diversidade, até para que as meninas, as Edilenes, as Cidas, as Marias de qualquer cidade deste vasto país possam ver que nós cabemos neste espaço. É da dimensão ética que o TSE tenha uma ministra negra, pois estamos falando de pessoas negras representando mais de 50% da sociedade. Mulheres negras, mais de um quarto da população.
A mulher negra e o espaço de poder
Embora as mulheres representem 52% da população brasileira, quando o assunto é participação em espaços públicos, nos cargos públicos, somos uma minoria acachapante, que entristece. Temos hoje 29 deputadas negras eleitas (5,6% da representação total) — eram 30 antes da saída de Marina Silva. No Senado, temos apenas uma senadora negra. Olhando para a representação feminina no Congresso, a participação de mulheres na Câmara de Deputados é de cerca de 18% e, no Senado, de apenas 16%, abaixo da média mundial e abaixo da média dos parlamentos da América Latina. No Judiciário, dados do Conselho Nacional de Justiça de 2022 informam que magistradas negras representam apenas 7% do quadro nacional — magistradas mulheres são 38%. Nas cortes superiores, esse retrato é ainda desalentador.
Chegada ao TSE
Sinto-me preparada para desempenhar essa função. São décadas trabalhando e estudando o direito eleitoral, o direito público em geral, assim como ensinando e aprendendo nas várias universidades pelas quais passei. Espero que, cada vez mais, possamos ver mais mulheres como eu ocupando esses espaços.
Atuação no direito eleitoral
É natural que qualquer advogado que milite no campo eleitoral vá defender o interesse de determinado partido, de determinada candidatura. Fico muito tranquila, pois a cada caso a ser julgado vou examinar se, em alguma medida, haveria risco de a minha atuação violar a imparcialidade.
Extremismo e redes sociais
A proliferação do movimento extremista, ampliado por algoritmos, merece muita atenção do mundo democrático e do sistema de Justiça, pois o extremismo, que se vale do discurso de ódio, da exclusão, da coação, atinge em cheio as mulheres negras. Merece atenção do sistema eleitoral, porque se valendo da desinformação, tenta manipular os resultados dos pleitos. Nos meus estudos, tenho refletido sobre as possibilidades de intervir nessa realidade.
Limites da mídia digital
Urge estabelecer limites às mídias digitais, quando se verificar abuso, para que a escolha do eleitorado não seja atingida pela mentira. As plataformas digitais precisam se comprometer com a qualidade do que ali circula e atuar para combater essa disfuncionalidade. Precisam dar transparência ao desenvolvimento dos algoritmos que impactam os processos eleitorais.
Fonte: Correio Braziliense