Na série de televisão pós-apocalíptica americana de 2023 The Last of Us, os seres humanos caminham para a extinção à medida que uma infecção causada por um fungo no cérebro transforma a maioria das espécies em zumbis. Pode parecer totalmente implausível, mas os fungos podem e, de fato, infectam o cérebro humano.
Os fungos estão presentes em todo o nosso ambiente: no ar, no solo, no material vegetal em decomposição, na nossa pele e até mesmo no intestino como parte da nossa flora natural.
Fungos microscópicos causadores de doenças podem invadir várias partes do corpo, levando a uma série de sintomas e problemas de saúde. As infecções fúngicas contribuem para cerca de 1,5 milhão de mortes a cada ano.
Sou uma neurobióloga que estuda infecções fúngicas do cérebro há 10 anos.
Fiz parte de uma equipe que publicou recentemente uma análise discutindo o surgimento e ressurgimento de infecções fúngicas na África, especialmente na África Subsaariana.
Concluímos que a África sofre de uma epidemia silenciosa, mas onerosa, de infecções fúngicas.
Descobrimos que o surgimento de infecções fúngicas mortais na região é impulsionado principalmente pela alta incidência de infecções por HIV, vírus causador da Aids, falta de acesso a assistência médica de qualidade e indisponibilidade de medicamentos antifúngicos eficazes.
O que são infecções fúngicas?
Durante a maior parte da história da humanidade, as infecções fúngicas não foram uma ameaça à saúde humana. Isso porque a maioria dos fungos não consegue sobreviver à temperatura quente do corpo humano de 37°C.
No entanto, as mudanças climáticas e outras pressões ambientais levaram ao surgimento de espécies de fungos capazes de sobreviver à temperatura do corpo humano.
Mesmo assim, nosso sistema imunológico é capaz de combater infecções fúngicas. Por exemplo, nossos corpos podem criar ambientes ácidos localizados, limitar a disponibilidade de micronutrientes e liberar agentes antimicrobianos.
No entanto, quando o sistema imunológico está enfraquecido, os fungos conseguem driblar as defesas do corpo e evitar serem detectados.
Eles podem gerar agentes bioativos que os ajudam a escapar ou se ajustar à resposta imune do hospedeiro. Alguns se adaptam para sobreviver em ambientes hostis, com poucos nutrientes e oxigênio.
Pessoas imunocomprometidas correm o risco de desenvolver doenças fúngicas graves ou com risco de morte. A África é responsável por 67% dos casos globais de HIV, e as doenças fúngicas oportunistas estão aumentando.
Alguns exemplos
Um exemplo de doença fúngica oportunista é a meningite criptocócica, que surgiu com a pandemia de HIV no fim da década de 1980.
Hoje, a África Subsaariana é responsável por cerca de 73% de todos os casos globais e mortes resultantes da doença.
A meningite criptocócica é causada pelo fungo Cryptococcus neoformans, encontrado no solo e em excrementos de aves. A infecção ocorre quando alguém inala esporos do fungo. Inicialmente, ela leva ao desenvolvimento de uma infecção pulmonar e, posteriormente, uma infecção cerebral fatal.
A meningite criptocócica é uma das principais causas de meningite em adultos na África Subsaariana — e está associada a quase 20% de todas as mortes relacionadas à Aids.
Os tratamentos eficazes para a meningite criptocócica são inacessíveis para a maioria das pessoas afetadas. Os custos variam entre US$ 1,4 mil e US$ 2,5 mil por paciente para um tratamento antifúngico completo de duas semanas.
O desenvolvimento de medicamentos mais baratos foi prejudicado por uma compreensão limitada de como o fungo causa danos tão extremos no cérebro.
Outro exemplo de doença fúngica oportunista relacionada ao HIV é a pneumonia por Pneumocystis jirovecii.
Ela é causada por um fungo onipresente e transportado pelo ar, o Pneumocystis jirovecii, que é transmitido de pessoa para pessoa.
O Pneumocystis dificilmente causa problemas em pessoas com sistema imunológico saudável, mas elas agem como reservatórios e transmitem a infecção para indivíduos com sistema imunológico frágil, que podem desenvolver sintomas graves, incluindo febre, tosse seca e dificuldade para respirar.
A pneumonia por Pneumocystis jirovecii ocorre em 15% a 20% dos pacientes com HIV que apresentam problemas respiratórios.
O diagnóstico de pneumonia por Pneumocystis jiroveci é caro e requer um laboratório bem equipado.
Nas instalações de saúde urbanas e rurais pobres da África, isso será um desafio. O fungo, P. jirovecii, também é extremamente difícil de cultivar, o que limita o diagnóstico e as pesquisas.
Fardo crescente
Em nossa revisão, encontramos vários fatores que estão impulsionando o surgimento e ressurgimento de ameaças fúngicas.
Entre eles, estão as mudanças climáticas, a disseminação de doenças imunossupressoras, avanços médicos como transplantes de órgãos (o sistema imunológico é suprimido para minimizar a rejeição), o uso de imunossupressores para controlar doenças inflamatórias e o uso de antibióticos.
Embora esses fatores não sejam exclusivos da África, o fardo das doenças fúngicas e o número de pessoas que sucumbem a elas é muito maior.
A pandemia de covid-19 parece ter piorado a carga fúngica global.
Por exemplo, estudos recentes mostraram que pessoas que foram infectadas com covid e se recuperaram são vulneráveis à infecção por um fungo chamado mucormycosis, também conhecido como fungo negro.
Danos pulmonares induzidos pela covid, alto nível de açúcar no sangue e os esteroides frequentemente usados para tratá-los são fatores de predisposição à infecção por fungo negro.
Com uma capacidade reduzida de eliminar os esporos fúngicos e uma resposta imune reduzida, graças aos esteroides, o fungo pode entrar e infectar os seios da face e os ossos da face, passando, por fim, para o cérebro.
Mas não temos medicamentos antifúngicos?
A maioria da população afetada por infecções fúngicas vive em assentamentos rurais ou urbanos pobres.
Com sistemas de saúde mal financiados e sobrecarregados, muitos países africanos não estão bem preparados para lidar com infecções fúngicas.
Além disso, alguns dos medicamentos antifúngicos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) — como a flucitosina — não estão disponíveis na maioria dos países africanos. Às vezes, drogas ineficazes e até bastante tóxicas são usadas no seu lugar.
O surgimento de cepas fúngicas resistentes a medicamentos também é uma ameaça crescente. De grande preocupação é o aumento de espécies de Candida multirresistentes, espécies de Aspergillus resistentes a azóis e Cryptococcus clinicamente resistentes.
Estratégias de gerenciamentoAs ameaças fúngicas estão aumentando a pressão sobre os sistemas de saúde sobrecarregados com um arsenal limitado de opções de tratamento.
Profissionais de saúde, pesquisadores científicos, formuladores de políticas e governos devem abordar as lacunas no diagnóstico e no tratamento de infecções fúngicas. Isso vai ajudar a melhorar a capacidade de lidar com eles.
* Rachael Dangarembizi é pesquisadora de infecções neurológicas do departamento de ciências fisiológicas da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul.
Fonte: G1