O g1 conversou com a psicóloga Valeska Zanello, referência em saúde mental da mulher, e a advogada Miriane Ferreira, sucesso nas redes com 1,6 milhão de seguidores, que dá dicas a mulheres para não serem vítimas desse tipo de violência.
Trabalhar e nunca ter dinheiro. Não ter acesso às próprias contas bancárias. Ter bens furtados ou quebrados. Perder parte ou tudo que foi conquistado com anos de trabalho. Esses são exemplos de violência patrimonial. Os casos da apresentadora Ana Hickmann e da cantora Naiara Azevedo jogaram luz sobre esse tipo de abuso que está na Lei Maria da Penha, apesar de pouco falado.
Segundo especialistas, o que leva mulheres independentes financeiramente a estarem sob a vigilância de homens e serem vítimas de violência patrimonial é a estrutura de abuso existente nos relacionamentos e tem como princípio a violência psicológica.
O que diz a lei: a violência patrimonial é aquela em que o agressor se utiliza de dinheiro, documento ou bens (sejam eles de valor financeiro ou sentimental) para tentar controlar a vítima, podando sua liberdade total.
Como contaram Ana Hickmann e Naiara Azevedo, os ex-companheiros começaram ajudando na administração da carreira, partilhando a carga de trabalho e terminaram com discursos como o de que elas eram incapazes e não sabiam gerir questões financeiras. (Veja acima o depoimento de Naiara Azevedo.)
Origem da violência patrimonial
Referência na área de saúde mental e gênero, a pesquisadora Valeska Zanello, doutora em psicologia e professora na Universidade de Brasília (UnB), explica que a violência psicológica é o princípio desse tipo de abuso.
Segundo ela, o motivo para mulheres com poder e dinheiro ainda se verem vítimas de violência é a construção social da validação feminina na sociedade, que depende de ter um relacionamento ou um casamento.
Você pode ser a mulher mais famosa, não importa. A chancela de sucesso é ser escolhida e se manter naquele relacionamento. É muito fácil manipular essa vulnerabilidade da mulher e é uma violência que se traveste de cuidado, como se ele quisesse ajudar e apoiar. E, então, ainda que perceba algo estranho no comportamento do homem, a mulher se sente culpada por questionar.
— Valeska Zanello, doutora em psicologia
Da violência psicológica à violência patrimonial
Os especialistas explicam que, até o homem chegar a ter plenos poderes sobre o patrimônio da mulher, é percorrido um ciclo de violência:
👉 O relacionamento começa como qualquer outro, em fase de lua de mel, em que é estabelecida uma relação de confiança. Ele, então, oferece ajuda para a administração.
👉 Na sequência, a ajuda se torna controle e para que isso seja mantido, ele usa manipulação e violência psicológica.
Frases como “você não consegue fazer isso”, “você vai perder todo nosso dinheiro”, “você está desconfiando de mim?” ou “você não me ama mais?” são alguns dos discursos usados. O tom do discurso violento vai aumentando e a mulher se vê encurralada.
No caso de Naiara Azevedo, ela conta que ele a ajudava na administração da carreira até que passou a controlá-la e mesmo que ela ganhasse milhões, só tinha acesso a R$ 1 mil por mês. A cantora só foi se dar conta da violência ao se separar e perceber que alguns de seus bens não estavam em seu nome.
Com Ana Hickmann, após a denúncia de agressão contra o marido, passaram a viralizar vídeos públicos em que ele aparece criticando a aparência dela, desprezando-a e sendo grosseiro. Eles passaram 25 anos juntos e ela conta que a discussão que precedeu o divórcio foi por descobrir dívidas em seu nome que não fazia ideia que existiam.
É uma violência psicológica que termina com a violação da vida íntima da mulher, porque as finanças são intimidade.
— Valeska Zanello, psicóloga
Segundo ela, falta emancipação às mulheres: “Somos vítimas porque somos empoderadas, mas não emancipadas. Empoderamento é ter uma posição melhor nesse jogo assimétrico entre homens e mulheres, mas a emancipação é sermos individuais, sem a necessidade de validação que nos coloca em ciclos de violência”.
Aumento de casos
O caso das famosas escancarou um tipo de violência comum e que destrói a vida das mulheres.
Um levantamento recente feito pelo Instituto Igarapé indica que, nos últimos cinco anos, entre 2018 e 2022, cresceu 56% o número de casos de violência patrimonial contra mulheres no Brasil, saindo de uma taxa de 3,9 por 100 mil mulheres em 2018 para 6,1 por 100 mil mulheres em 2022.
Em 2022, foram registrados 6.041 casos de violência patrimonial contra mulheres no país, o que significa que mais de 16 mulheres foram vítimas desse tipo de violência por dia.
“A violência patrimonial aumentou porque as mulheres estão ganhando destaque no mercado e os homens viram uma nova maneira de violentar. E isso ocorre também em classes mais pobres, em que eles levam tudo o que elas têm e que é mais difícil se recuperar. Isso pode destruir a vida de uma mulher”, diz Zanello.
Como se proteger?
Com 1,6 milhão de seguidores no Instagram, a advogada Miriane Ferreira ganhou projeção nas redes sociais com seus vídeos alertando mulheres sobre seus direitos, incluindo sobre como evitar que sejam vítimas de violência patrimonial. (Veja vídeo no início desta reportagem.)
Ela conta que decidiu fazer os vídeos por perceber o aumento desse tipo de violência e que os homens usavam o dinheiro para manipular as mulheres.
É uma violência que começa sutil. O homem vai tomando o dinheiro dela aos poucos e dando em conta gotas. No caso de mulheres que não têm renda, ele vai tirando aos poucos a informação dela até que chega ao ponto que a mulher não sabe nada sobre as finanças da família. E eles usam o dinheiro para manipular a vida delas.
— Miriane Ferreira, advogada
Os casos mais comuns:
Compra de bens no nome de terceiros: quando o companheiro adquire bens durante o casamento em comunhão parcial, em que tudo é dividido, no nome de outras pessoas para evitar a partilha em caso de divírcio.
Mulheres sem acesso ao patrimônio: mulheres que trabalham ou não trabalham, mas que o marido é o único que tem acesso ao dinheiro da família e ela não sabe como ele é administrado.
Ameaça de não partilhar bens no divórcio: principalmente em casos em que a mulher não trabalha fora de casa, o companheiro ameaça que ela não vai ter dinheiro ou acesso aos bens porque a renda exclusiva era dele.
Segundo Miriane, as mulheres são vítimas por um ciclo social que as deixa vulneráveis, mas a única forma de se proteger é conhecendo seus direitos e estando atentas. Ela reforça que essa responsabilidade recai sobre elas porque, apesar de a violência patrimonial estar prevista na Lei Maria da Penha, não há prisão.
“A mulher deve ir à delegacia fazer uma ocorrência, mas para tentar o ressarcimento. No direito penal, temos as escusas absolutórias e isso faz com que, quando é o cônjuge que comete o crime patrimonial, ele não tem pena. Mesmo comprovando, ele vai ter que ressarcir e indenizar, mas não vai preso”, explica.
Como se proteger:
Ter acesso às finanças: se houver um compartilhamento do dinheiro, isso precisa estar em uma conta conjunta em que ela tem acesso para movimentar e ver tudo que entre a sai.
Conhecer os direitos do seu regime de casamento: o regime de comunhão parcial é o mais comum no Brasil e nele, independentemente da mulher trabalhar ou não, tudo que for conquistado, é partilhado igualmente em caso de divórcio.
Bens no nome do casal: acompanhar a compra de bens e garantir que eles estejam no nome do casal para que sejam incluídos na partilha.
Não entregar assinatura digital: a assinatura digital é o mesmo que uma assinatura reconhecida em cartório. Ela é um documento individual e se for usada por outra pessoa fica difícil provar que não foi você.
Não colocar marido como administrador: seja da carreira, das finanças ou da empresa que está em nome do casal. É importante que seja feito por uma empresa ou funcionário terceiro sem relação familiar para evitar problemas em caso de divórcio.
Procuração por tempo e evento determinado: se por algum motivo a mulher precisa dar uma procuração ao marido, que seja esclarecendo o período e o motivo disso para que o documento não seja usado em qualquer momento e para qualquer coisa.
Transparência: o primeiro sinal de que há algo de errado é a falta de transparência. Se recusar a dar informações ou fazer chantagens emocionais, é um sinal de alerta de que algo não está certo.
“A mulher precisa saber que ela tem direitos e essa conscientização vai fazer com que ela não aceite mais essas situações e não se nivele por baixo porque tem exemplos de mãe e amigas que não tiverem seus direitos garantidos”, completa Miriane.
O que dizem o marido de Ana Hickmann e o marido de Naiara Azevedo
Após ser acusado de agressão por Ana Hickmann, de quem está se divorciando, Alexandre Correa, divulgou uma nota de esclarecimento em que afirma que sempre serviu a ela como “seu agente, com todo zelo, carinho e respeito”.
Já Raphael Cabral, marido de Naiara Azevedo, nega que tenha cometido violência patrimonial e que tenha agredido a cantora. E diz que vai provar à polícia que é inocente.
Fonte: g1