Frequentadores de shows e festas enfrentam problemas com cartões de consumo, conhecidos como cashless. (Foto: Freepik)
Sistema cashless promete agilidade, mas consumidores enfrentam filas, sites com erro e prazos apertados para recuperar valores
“No jogo da sorte, sempre dei azar. Vamos embora, sei do itinerário”. O verso de Alceu Valença poderia muito bem traduzir a experiência dos fãs que foram prestigiar seu show em Goiânia, no fim de maio. O que deveria ser uma noite de música e diversão acabou se transformando em um roteiro de frustrações – e não é um caso isolado.
A culpa não foi do repertório ou da apresentação, mas do complemento ao programa: comes e bebes. Para consumir no evento era preciso adquirir um cartão mediante o pagamento de R$ 10 e carregá-lo com o saldo do que iria gastar.
O jornalista Brenno Sarques e sua amiga cumpriram o itinerário: sem filas, compraram o cartão logo na entrada, recarregaram, aproveitaram o show e terminaram a noite com R$ 6 e R$ 10, respectivamente, não utilizados. Depois da diversão, a decepção: para ter de volta tanto o saldo quanto o valor pago pelo meio de pagamento, precisavam enfrentar uma fila enorme na saída, proposta nada atraente para quem só queria ir para casa depois de algumas horas de diversão.
Desistiram e decidiram resolver online. Foi assim que descobriram que o reembolso só poderia ser solicitado entre 2 de junho a 6 de julho. Após a solicitação, ainda é necessário esperar até 10 dias para ter o valor ressarcido. Nas tentativas, uma sequência de erros no site, CPFs não localizados, saldo não reconhecido. Até hoje, não receberam o dinheiro. “Imagine quanto conseguem arrecadar pegando R$ 5 de um, R$ 8 de outro. Eram mais de 3 mil pessoas no show”, reclama Brenno.
Débora* e alguns amigos também passaram por esse transtorno. Em um festival de música em Brasília, ela e o então namorado juntaram cartões de edições anteriores (e dias diferentes) e constataram que, somados, havia quase R$ 300 de saldo. A ideia era usar tudo, mas pouco pode ser aproveitado. Situação semelhante ocorreu no Moto Week 2025, também na capital federal. Ela levou o cartão da edição do ano passado e descobriu que a edição daquele ano tinha outro modelo, sendo obrigada a pagar R$ 6 por um novo.
Diante da burocracia para resgatar os valores, eles desistiram. “Não é a primeira vez que faço isso, e nem meus amigos. A gente acaba deixando para depois e nunca recupera o dinheiro”, conta. “Fica parecendo que as empresas fazem de propósito e colocam dificuldades para ninguém ir atrás”, completou.
Reclamações se repetem
No Reclame Aqui, não faltam relatos semelhantes na página da empresa Zig, sistema de pagamento usado no show do Alceu Valença e do Moto Week 2024 e 2025 e diversos outros em todo o país. Em um deles, o consumidor afirma ter seguido todos os passos para pedir o reembolso, mas o sistema não reconheceu seu CPF e o saldo não foi devolvido – como ocorreu com o Brenno e sua amiga.
A resposta da Zig foi informar que “não identificou as transações” e sugerir que ele procurasse o organizador do evento. Em outro caso, falhas no site impediram a conclusão do pedido e, quando o consumidor tentou novamente, o prazo já havia expirado. A empresa negou o reembolso, reforçando que as datas estavam previstas nas regras.

Reprodução da reclamação de um consumidor sobre a devolução do valor pago pelo cartão físico no site do Reclame Aqui. (Foto: Reprodução)
Entre dezembro de 2024 e maio de 2025, a Zig acumulou 1.772 reclamações no site, com apenas 64,9% de solução e nota média de 4,6/10. Do total, 60,2% tratam de estorno de valores pagos, 20,22% de problemas com pagamentos eletrônicos e 20,13% de falhas no site.
Já a B2 Eventos, responsável pela realização do show do cantor pernambucano, teve 22 reclamações nos últimos 12 meses, metade delas relacionadas ao estorno de valores pagos. Nos casos em que envolvem a Zig, eles orientam a procurar a empresa do sistema de pagamento.
Como funciona o sistema cashless
Os cartões de consumo em eventos e shows são conhecidos como cashless, um modelo em que o consumidor recarrega um cartão ou pulseira com dinheiro antes ou durante o evento e utiliza esse saldo para comprar alimentos e bebidas internamente. A promessa é de mais agilidade nas filas e menos erros de cobrança. No Brasil, começou a se popularizar a partir de 2014, inspirado em festivais europeus.

Política de reembolso informada no site de resgate dos valores do sistema da Zig do show do Alceu Valença realizado pela B2 Eventos. (Foto: Reprodução)
A Zig, que fornece esse serviço, afirma em seu site que o saldo só pode ser usado no evento em que foi carregado e que, para reaver valores não gastos, é preciso solicitar o reembolso em prazos específicos definidos para cada evento. Se o prazo expira, o consumidor perde o saldo.
Outro problema apontado por clientes em reclamações no site Reclame Aqui é que nem sempre essa política é informada com antecedência. Muitas vezes, a exigência aparece apenas em letras pequenas no site de vendas ou só é comunicada na entrada do evento, quando não há mais alternativa.
Seu direito
Segundo o coordenador da Escola Estadual de Defesa do Consumidor do Procon Goiás, Antônio Carlos Ribeiro, “o consumidor não pode ser prejudicado por prazos excessivamente curtos ou procedimentos complicados impostos pela empresa”. Mesmo que o prazo fixado pela empresa tenha acabado, se não houver informação clara e ostensiva, ela não pode reter o valor, explicou.
Ele lembra que cobrar pelo cartão físico não é proibido, mas pode ser abusivo quando as condições para devolução são inviáveis, como exigir a entrega no mesmo dia em filas enormes. E reforça: a responsabilidade é solidária entre o organizador do evento e a operadora do sistema de pagamento — não adianta um jogar a culpa no outro.
O que fazer para não sair no prejuízo
Para evitar dores de cabeça, registre o cartão de consumo no seu próprio CPF, guarde comprovantes de recarga e saldo, verifique com antecedência as regras de reembolso e documente falhas no sistema com prints e vídeos.
Se o reembolso não for feito, acione o Procon pelo telefone 151, pelo (62) 3201-7124 ou pelo portal Expresso. Se for constatada cobrança indevida, o valor pode ser devolvido em dobro.
Outra opção é registrar o transtorno no Reclame Aqui, como fizeram diversos consumidores. Em geral, as respostas diretas das empresas são mais rápidas.
A Descomplicando procurou a Zig e a B2 Eventos — responsável pelo show do Alceu Valença —, mas não obteve resposta até a publicação desta coluna. O espaço continua aberto.
*Nome fictício para preservar identidade.
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