O Cerrado é a savana com maior biodiversidade do planeta, concentrando quase 5% de todas espécies de vertebrados do mundo e 30% do país. Entretanto, é também o bioma brasileiro com menor proteção legal. Sob forte ameaça imposta pelas atividades de mineração e agropecuária, espécies endêmicas (que só ocorrem nessa região) estão ameaçadas de extinção. Cientistas de todo o mundo têm unido esforços para identificar e catalogar as espécies, produzindo conhecimento que pode basear a defesa do bioma.
Rogério Bastos é doutor em Zoologia e coordenador do programa de pós-graduação em Biodiversidade Animal da Universidade Federal de Goiás (UFG). Desde 1995, Rogério Bastos pesquisa na Floresta Nacional (Flona) de Silvânia. Em 28 anos estudando o local, o cientista encontrou 36 espécies de anuros (sapos, rãs e pererecas) — um número significativo, considerando que a área tem 468 hectares e no todo o Cerrado possui cerca de 220 espécies.
Duas espécies de anuros foram descritas a partir de exemplares coletados na Flona de Silvânia: o Dendropsophus cruzi e Ololygon centralis. Isso significa que a Floresta Nacional é a localidade típica das espécies — é a partir da descrição dos indivíduos daquele local que toda a espécie é caracterizada. “É uma unidade de conservação pequena com grande importância”, diz Rogério Bastos.
O pesquisador explica que a riqueza de espécies encontradas na Floresta Nacional se deve ao fato de ser uma área protegida, com corpos d’água tradicionais preservados e diversidade de ambientes — , lagoas, brejos, riachos, cerradão e cerrado típico. Este não foi sempre o caso, entretanto. O cientista conta como um de seus estudos foi fundamental para proteger o local.
“Há 15 anos, uma estrada de terra cruzava a Flona de Silvânia”, conta Rogério Bastos. “Era uma via que economizava 25 quilômetros do percurso em relação à estrada convencional, mas sem fiscalização policial, era a rota preferida por quem cometia qualquer crime. Fizemos um estudo para o plano de manejo com armadilhas de interceptação e queda para capturar anuros a 150 metros de trilhas e a 300 metros das trilhas. Concluímos que as trilhas têm um grande impacto na abundância de espécies.” O estudo embasou pedido do Ministério Público de que a estrada fosse fechada para proteger a biodiversidade da Floresta Nacional.
Em outro dos diversos artigos baseados em informações coletadas na Flona de Silvânia, Rogério Bastos analisou 20 anos de atividade acústica dos anuros. “Nele, descrevemos a alteração da vocalização dos anuros em função da variação climática”. O pesquisador explica que a vocalização dos sapos, rãs e pererecas tem função reprodutiva. Os machos cantam para atrair parceiras. Em geral, os anfíbios cantam mais no verão e reduzem a atividade no frio, mas existe uma faixa ideal, para além da qual a atividade dos anuros é prejudicada.
“Percebemos que variações da temperatura e precipitação impactam o tom do canto, a duração, a taxa de repetição”, explica Rogério Bastos. O fenômeno se deve em parte à alterações no tamanho do animal em função do clima. “Se, em apenas 20 anos (um período insignificante na escala da evolução), percebemos diminuição desses animais, projetamos que ao longo prazo essa mudança terá impactos severos para a reprodução e sobrevivência das espécies. O tamanho é importante para a escolha de parceiros, predação, defesa do território e outros.”
Mamíferos
No coração do Cerrado, Goiás é lar de boa parte da fauna do bioma — das 199 espécies de mamíferos, e 191 deles podem ser encontrados no estado. O levantamento é um esforço conjunto de 13 instituições de ensino, coordenado por Wellington Hannibal, coordenador do programa de pós-graduação em Ambiente e Sociedade da Universidade Estadual de Goiás (UEG).
Antes dessa publicação, apenas os estados do AP, MT, MS, SP, RJ e PR possuíam suas espécies de mamíferos listados. A “Lista de Mamíferos para o Estado de Goiás” é fundamental por permitir estudos como as modelagens climáticas — em que cientistas encontram os efeitos das mudanças climáticas e da interferência humana nas populações de animais. A lista de mamíferos também permite que cientistas conheçam a distribuição das espécies — informação útil para orientar políticas de proteção ao meio ambiente.
A equipe, dividida em três (pequenos mamíferos, mamíferos de médio e grande porte, e morcegos) registrou amostras de espécies de mamíferos alojados em coleções científicas e descritos na literatura a partir da coleta em pontos espalhados por todo o estado. “Apenas os morcegos foram coletados a partir de 115 pontos, e constituíram a ordem com maior número de espécies”, afirma Wellington Hannibal. “Das 191 espécies de mamíferos listadas no estado, 90 são de morcegos (ordem Chiroptera).”
Dentro da classe dos mamíferos em Goiás, os roedores ocupam o segundo posto de ordem mais diversa — são 43 espécies. A ordem Carnivora, onde estão os felinos e canídeos, tem 19 espécies. Didelphimorphia, marsupiais como os gambás e as cuícas, têm 17 espécies no estado. As ordens dos veados (Cetartiodactyla) e a dos tatus (Cingulata) possuem sete espécies cada; a dos primatas possui quatro; a das preguiças e tamanduás (Pilosa) possui duas; a das lebres (Lagomorpha) e das antas (Perissodactyla) ambas possuem uma cada.
Das 191 espécies, 28 estão ameaçadas — 14,7% do total. Wellington Hannibal explica que a maior parte dos mamíferos sob ameaça de extinção são os de médio e grande porte, como o gato-do-mato, onça pintada, lobo guará, tatu canastra, anta, tamanduá bandeira. “Conseguimos observar claramente que quanto menor a cobertura de vegetação nativa, menor a diversidade de espécies. As áreas legalmente protegidas são locais onde as espécies ainda persistam”, diz o professor da UEG.
Wellington Hannibal deixa três recomendações, carências no estudo e nas políticas ambientais goianas que precisam ser abordadas para que o estado consiga proteger sua biodiversidade. “Primeiro, deveríamos estimular a criação de museus para abrigar informações sobre a biodiversidade de Goiás. Preferencialmente, esses museus devem estar vinculadas a uma entidade como a Sociedade Brasileira Mastozoologia.”
Em segundo lugar, Hannibal destaca que o estudo de muitas espécies encontra um gargalo na análise citogenética e molecular. “Algumas espécies de roedores ou marsupiais são pouco estudados no Brasil, além de serem crípticos (difíceis de se encontrar).” Por último, o cientista destaca a importância da criação e manutenção das áreas protegidas que contem com um plano de monitoramento da diversidade.
Cooperação internacional
Há quatro anos, 18 pesquisadores e sete colaboradores do Brasil, Colômbia, Espanha e Estados Unidos conduzem um projeto para monitorar o canto de anfíbios anuros nos biomas do Cerrado, Pantanal, Amazônia e Mata Atlântica. Formando uma das redes com maior alcance espacial e temporal da ciência brasileira, a pesquisa está construindo uma extensa coleção científica e revelando os impactos da ação humana nas populações de anfíbios.
Ao lado de Diego Llusia, Larissa Sayuri e Juan Ulhôa, Rogério Bastos é um dos coordenadores do projeto “Monitoramento Acústico Automatizado em Larga escala de Anfíbios Anuros”. Ele descreve o trabalho de fôlego. Cientistas posicionam gravadores de áudio e registradores de dados (dataloggers) em 43 pontos de interesse. Ao longo de todos os dias, a cada 15 minutos, esses dispositivos registram um minuto de áudio. Até o momento, já foram reunidos 31 terabytes de dados acústicos.
A imensa quantidade de dados é então enviada ao laboratório na Espanha, onde uma Inteligência Artificial reconhece as vocalizações dos sapos, rãs e pererecas. As informações sobre a atividade acústica dos anfíbios é útil para criar modelos matemáticos que cruzam dados com variações climáticas.
“Algumas espécies, como a rã-cachorro (Physalaemus cuvieri), ocorrem no Paraná e também em Goiás. Essa espécie experimenta temperaturas que vão de 0ºC até 40ºC, bem como altas e baixas umidades. Ao gravar sua atividade em todas as condições, podemos compreender em quais circunstâncias ela vocaliza mais ou menos.”
As mudanças climáticas alteram as condições para a vida dos anfíbios. Com o aquecimento, é esperado que locais onde as condições de vida para os anfíbio são ideais se tornem piores. Assim, cientistas serão capazes de projetar de cenários para prever o que pode ocorrer com a distribuição dos anfíbios, e entender como isso afetará o equilíbrio dos ecossistemas.
O projeto está sendo desenvolvido dentro do Instituto Nacional de Ciência e tecnologia (INCT) em Ecologia, Evolução & Conservação da Biodiversidade (EECBio), coordenado pelo Dr. José Alexandre Felizola Diniz Filho (UFG). Estas pesquisas são financiadas pela FAPEG, CNPq e CAPES.
Fonte: Jornal Opção