Adriana Melonio conta, em entrevista ao Correio, o caminho árduo até chegar ao tribunal, fala de racismo, da sua vivência e da Brasília que segrega
O Poder Judiciário no Brasil é formado majoritariamente por homens brancos, que têm origem em classes média e alta. Nos últimos meses, esteve em debate a indicação de uma mulher negra para o Supremo Tribunal Federal (STF). O presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolheu para a vaga o atual ministro da Justiça, Flávio Dino. No entanto, o debate que foi gerado em torno do caso trouxe reflexões sobre a representatividade da população na magistratura. A juíza Adriana Melonio, auxiliar da presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), é exemplo dos desafios enfrentados por mulheres negras na magistratura.
Ela destaca que encontra na Justiça um ambiente dominado por homens, machista e conta ter sofrido episódios de racismo, mesmo ocupando o cargo de magistrada. Adriana foi a primeira pessoa de sua família a se formar no ensino superior. Filha de pais nordestinos, ela está em Brasília para atuar na corte máxima da Justiça do Trabalho. Ela destaca que ainda existe muito a avançar para combater o racismo, atingir a igualdade de gênero e conta que foi bem recebida em Brasília, mas critica a segregação social da cidade, onde famílias de classe média ou ricas vivem no Plano Piloto e os mais pobres nas regiões administrativas mais afastadas do centro da cidade. Adriana Melonio é a entrevistada desta edição na série “Vozes Negras do Judiciário” produzida pelo Correio. Confira:
A senhora nasceu em uma comunidade na Baixada Fluminense. Como foi sua infância e adolescência?
Minha infância e adolescência foram num bairro considerado da ‘classe C’, com um pai metalúrgico, uma mãe dona de casa e uma irmã mais nova. Foi uma infância sem luxos, feliz e cercada de amor.
A senhora foi a primeira da sua família a se formar no ensino superior. Como seus pais, amigos e familiares reagiram?
Eu sou neta de uma quebradeira de coco babaçu do interior do Maranhão, então dá para imaginar a alegria, não é mesmo? Lembro-me que, na época da minha formatura, meu pai tinha um Voyage do modelo antigo, quadradão, que até estava em bom estado, mas já tinha saído de linha. No mês de minha formatura, meu pai trocou por um Gol “bolinha”, também de segunda mão, mas mais novo que o Voyage. Ele trocou de carro só para ter um carro mais “novinho” para me levar até a colação de grau, acredita? Lembro-me que na época eu pensei que havia sido um gasto desnecessário. Tempos mais tarde, eu pude entender todo o simbolismo daquele momento para ele, minha mãe e a minha irmã. Também tenho outra lembrança muito importante desse dia. Na época de minha formatura, eu era estagiária na área jurídica de uma escola no Rio e eu era muito amiga das trabalhadoras da limpeza. Eu não preciso dizer qual a cor delas, não é? Obviamente, mulheres pretas.
E as convidou.
Eu fiz questão de convidá-las, mas achei que não iriam, pois moravam muito longe da UERJ, a cerimônia acabaria tarde e elas dependiam de transporte público para voltar para casa. Além disso, a dona Madalena, uma das auxiliares de serviços gerais convidada, já era bem idosa. Pois qual não foi minha surpresa quando, lá de cima do palco, logo no início da formatura, eu vi dona Madalena e a Vera, que cuidavam do meu setor, chegando. No momento em que meu nome foi chamado e eu fui buscar meu diploma ao som de Alegria, Alegria, do Caetano Veloso, eu vi as duas pulando e batendo palmas… No dia seguinte, de volta à escola, eu fui falar com dona Madalena e disse que achava que, por conta de todas as dificuldades de deslocamento que eu já narrei, ela não iria. Ela me respondeu: “Imagina se eu iria faltar. A gente estava ali se formando junto com você”.
Como foi a trajetória de estudos até ser aprovada em concurso e se tornar juíza?
Foi um caminho árduo, pois, depois que me formei, eu não pude, como algumas pessoas com privilégios econômicos podem, parar e só estudar. Eu advoguei por um tempo, mas eu sempre gostei de “saber quanto cairia na minha conta todo mês”. Então vi que a saída era o concurso público. Mas a essa altura eu já era casada e não havia a opção de não trabalhar, pois as contas da casa eram divididas. Na época, isso foi em 2003, eu queria fazer o concurso do Ministério Público Federal ou Estadual. Para o Federal, muito inspirada pelo ministro Joaquim Barbosa. Mas eu sabia que esses concursos de alta performance demandavam dinheiro para cursos e viagens, o que eu não tinha. Então eu resolvi fazer concursos para servidora, para conseguir o dinheiro para estudar. Eu contei com muito apoio do meu marido e da minha mãe, a quem entreguei todo o trabalho de cuidado da minha casa, pois, morando na Baixada Fluminense e trabalhando na Zona Oeste do Rio de Janeiro, eu não tinha como estudar, trabalhar e cuidar dos afazeres domésticos.
E como a senhora se organizou?
E assim foi: em março de 2003, eu comecei a estudar para concursos de servidores. Em março de 2005, tomei posse como técnica judiciária na Justiça do Trabalho do Rio de Janeiro; em janeiro de 2007, como analista judiciária, cargo de nível superior. Ter sido aprovada no concurso para a Justiça do Trabalho como servidora da JT mudou a minha trajetória profissional. Mas, quando aprovada em 2005, eu ainda tinha o sonho do Ministério Público. Porém, depois de começar a trabalhar em uma Vara do Trabalho, com uma diretora de Secretaria chamada Clara Helena, nasceu um amor pela Justiça do Trabalho. Aí o MP ficou para trás, e eu comecei a pensar em ser juíza do Trabalho. Em 2008 fiz o primeiro concurso para juiz, enquanto era servidora. Ainda lembro-me da data: 8 de abril de 2008 foi a data que escrevi no meu primeiro caderno de estudos. A aprovação veio somente quase oito anos depois, e eu tomei posse em 17 de dezembro de 2015. Foram mais de 35 concursos, acho que quase quarenta, até chegar à magistratura trabalhista.
A senhora já vivenciou episódios de racismo no exercício da magistratura ou fora dela?
Ah… já. E foram eles que me fizeram tomar consciência racial. Porque, como eu sempre vivi na periferia, um território habitado quase na totalidade por corpos negros, eu achava que as vicissitudes que sofri, que o fato de eu ter chegado na UERJ, em 1997, e ser uma das únicas pessoas negras na Faculdade de Direito, era tudo fruto da questão de classe. E quando passei no concurso para juiz, em que havia “furado a bolha” da classe, aquelas situações continuaram acontecendo. Foi aí que me acendeu a luz. A mulher preta e a juíza nasceram juntas, eu costumo dizer. Vou contar só uma história. Uma vez, eu estava presidindo uma audiência: mesa de audiência contando com os advogados das partes, as partes e a testemunha ao meu lado, pois estava sendo interrogada. A secretária de audiência, uma mulher branca. De repente, entra um advogado na sala de audiência, durante a colheita do depoimento, vai diretamente à secretária e pergunta: “Excelência, a que horas a senhora despacha petição?”. A secretária ficou constrangida, fez-se um silêncio sepulcral na sala. Eu pedi licença à testemunha, virei a cadeira para o advogado e disse: “Olá, doutor! Bom dia! O senhor viu a moça branca e loira e já presumiu que só podia ser ela a juíza, não foi isso? Não conseguiu se atentar que a pessoa preta que está aqui ouvindo uma testemunha era a juíza? Muito prazer, eu sou a Adriana Melonio, juíza que está na vara e que só despacha ao término da pauta. Até mais, doutor”.
Como uma mulher negra em um tribunal superior, a senhora considera o Judiciário um espaço machista, racista e elitista?
Não sou eu que considero ou minha opinião. São os números. Há diversas pesquisas, como o Perfil do Poder Judiciário de 2018 e o Diagnóstico do Poder Judiciário de 2023, ambos do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que apontam que nosso Poder Judiciário é majoritariamente branco, masculino e que tem origem na classe média ou média alta, o que certamente faz com que racismo e machismo sejam reproduzidos nos espaços do nosso Judiciário.
O que fazer para mudar quadros e tornar o Judiciário mais acessível para as pessoas mais pobres?
As políticas de ações afirmativas, em especial a política de cotas, são instrumentos essenciais. Os escravizados eram impedidos — legalmente impedidos — de estudar. Um exemplo bem simbólico disso é que a lei nº 1 de 14 de janeiro de 1837 continha essa proibição. Após a abolição da escravidão, a população negra foi deixada para trás, sem nenhum tipo de política inclusiva e reparatória. Por isso que não há como se cair no discurso de meritocracia, pois ela pressupõe que as pessoas estão no mesmo ponto de partida e minorias sociais, como a população negra, não estão no mesmo lugar de partida. Então medidas como cotas em concursos e bolsas para os concursos mais elitizados são medidas que minoram essas desigualdades.
É importante ter uma mulher negra no STF?
Segundo dados do IBGE, 56% da população do Brasil é negra. Ainda segundo o instituto, 52,8% das pessoas do país são mulheres, portanto, se queremos um Poder Judiciário que represente a população brasileira, que se aproxime do jurisdicionado, é crucial que haja uma mulher negra ocupando uma das onze cadeiras do STF.
Qual sua impressão sobre Brasília? A cidade lhe acolheu bem?
Gosto muito da cidade e fui muito bem acolhida, mas não me esqueço de que a magistratura me traz um lugar de privilégio quanto ao lugar de habitação. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Brasília é a cidade mais segregada no mundo, à frente de cidades da África do Sul e Estados Unidos. Isso é refletido na ocupação territorial do espaço urbano, com pessoas com melhores condições financeiras morando no Plano Piloto e pessoas pobres morando nas regiões administrativas mais afastadas.
A senhora avalia que a extinção ou repressão eficaz do racismo ainda está longe?
Ainda há um caminho longo e árduo pela frente, mas não podemos deixar de esperançar.
O vocabulário jurídico e a complexidade dos termos, na visão da senhora, afastam a parte mais carente da sociedade da justiça?
Com certeza. É necessário que haja um equilíbrio entre a linguagem técnica própria de qualquer ciência, mas sem esquecer que nosso destinatário final são as pessoas. Uma linguagem simples e acessível também é uma medida de acesso à Justiça.
É possível incentivar e inspirar mais mulheres negras nos tribunais? Como?
Sim, com a presença de mais mulheres negras, afinal a representatividade, para além de ocupar espaços, nos inspira umas às outras.
Fonte: Correio Braziliense