03 de Julho de 2023
A reportagem ouviu familiares de internos de diversas unidades prisionais do Ceará
Com a notícia do afastamento de toda a diretoria da Unidade Prisional Agente Elias Alves da Silva (UP-IV), a antiga CPPL IV, devido aos casos de tortura dentro da unidade, novas denúncias do que, supostamente, vêm acontecendo em outros presídios do Ceará chegaram à reportagem e ao Judiciário Estadual. Os relatos indicam agressões diárias, privação de atendimento médico e até mesmo problemas graves na alimentação fornecida, como comida estragada e um pedaço de dente encontrado dentro da marmita de um interno.
A reportagem ouviu dezenas de familiares de presos que não suportam as práticas atuais nos equipamentos. Em entrevista exclusiva ao Diário do Nordeste, os juízes corregedores das quatro Varas de Execução Penal de Fortaleza disseram que “o volume de denúncias e algumas situações constatadas têm gerado forte preocupação dos juízes corregedores, que não compactuam com qualquer situação de violência ou violação de direitos”.
A Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização (SAP) nega as denúncias. Para a Pasta, que há poucos meses incluiu na nomenclatura o ‘Ressocialização’, as acusações são infundadas e “tentativa de ataque coordenado contra as políticas de ressocialização em larga escala da população privada de liberdade do Ceará, bem como a forte valorização que a polícia penal cearense tem recebido do Governo do Estado nos últimos anos”.
‘DEDOS QUEBRADOS E OUVIDO ESTOURADO’
Dentre os relatos mais atuais obtidos por meio dos familiares, episódios de tortura acontecem atualmente em, pelo menos, seis presídios na Região Metropolitana de Fortaleza: Unidade Prisional Desembargador Francisco Adalberto de Oliveira Barros Leal (UP-Caucaia); Unidade Prisional Agente Penitenciário Luciano Andrade Lima (UP-Itaitinga1); Unidade Prisional Professor Clodoaldo Pinto (UP-Itaitinga2); Unidade Prisional Professor José Jucá Neto (UP-Itaitinga3); Unidade Prisional Elias Alves da Silva (UP-Itaitinga4); Unidade Prisional Professor Olavo Oliveira II (UPPOO II)e Unidade Prisional de Aquiraz (UP-Aquiraz).
Os juízes corregedores falam que “os problemas constatados são variados, desde questões referentes à própria estrutura física das unidades, passando pela superlotação, ausência de assistência à saúde, psicossocial e jurídica adequadas; chegando até a constatação de internos lesionados”.
Todas os familiares que conversaram com a reportagem optam por ter identidade preservada, afirmando que quando denunciam publicamente os presos sofrem represálias e vão para o espaço de isolamento “onde são ainda mais agredidos”
VEJA RELATOS:
ESPOSAS DE INTERNOS DETENTO NO CARRAPICHO (UP-CAUCAIA)
DENÚNCIA 1: Sobre os maus tratos que está ocorrendo na unidade principal CPPL IV pois bem isso não está sendo diferente na unidade prisional Desembargador Francisco Adalberto de Oliveira Barros Leal mais conhecida como CARRAPICHO lá os presos estão sendo torturados privados de atendimento médicos nos dias de visita sua esposas não podem nem se quer beijar seu marido porque as não eles são tirados dos pátios e levados imediatamente pra tranca lá eles são torturados com pisas sem falar que a comida deles e a mesma todo dia e ainda vem estragada ainda teve um dia que um detento encontrou um dente dentro da quentinha sem falar que vai quentinhas estragadas nós mulheres dos detentos fazemos denúncia frequentemente para que ocorra melhorias no sistema carcerário queremos que essas torturas acabem e que os agente estão batendo sem pena nós presos e tem tido brigas constantes entre presos os agentes junto com a diretoria do presídio estão abafando tudo que acontece lá por favor nos ajude (sic).
DENÚNCIA 2: Meu marido está no carrapicho já a oito meses ele já foi pra tranca levou uma sura dos agentes que ficou sem consegui sentar por conta que duas nádegas doía ele estava todo doido agora mais ressente apareceu uns caroços nas suas pernas ele já solicitou encaminhamento médico eu também já solicitei já foi solicitado pelo advogado e nada dele ser atendido ela reclama também da comida que vão estragada sem contar que os agentes não deixam eles dormir quando dá umas horas da madrugada eles vão lá nas velas e ficam batendo nas grades pra eles não dormir ou deixam as luzes acessas pra que eles não possam dormir lá agentes estão muito perversos nao só com os detentos mais também com as esposas eles não permitem que nos esposas se que de um beijo no nosso companheiro quando fazemos isso os agentes chamam os lá na frente e reclama quando só reclama e até bom mais tem vezes que eles tiram as esposas da ala da vista e leva os maridos direto pra tranca queremos poder ter o direito de demonstrar carinho e também queremos que nossos familiares possam tirar a cadeia deles em paz o direto do presídio junto com os agente ficam encobrindo os atritos que existe lá dentro entre as facções queremos a separação deles que cada um fique no seu lugar isso de facções ficaram misturadas não pode acontecer. (sic)
DENÚNCIA DE FAMÍLIA DE UM INTERNO QUE ESTÁ NA CPPL I (UP-ITAITINGA 1)
Pedi pro advogado ver meu esposo e chegando lá ele estava doente, com dores e disse que não tinha atendimento médico. Eles precisam de socorro lá e eles não fazem nada. (sic)
DENÚNCIA PARENTE DE PRESO NA CPPL II (UP-ITAITINGA 2)
A lei de bater neles ainda deixar eles no sol despido o dia todo isso não era pra acontecer passar o dia sentado no chão quente o meu falar que até a comida que chega pra eles vem azeda eles são gente não são animais cadê os direitos deles além de tá preso ainda tem que passar por isso tudo lá dentro (sic)
DENÚNCIA CPPL III (UP-ITAITINGA 3)
Meu irmão tá com os dedos roxos , o ouvido dele tá estourado. Ele disse que implora pra receber um remédio mas eles não dão. Eu apelo para que os Direitos Humanos vão nas unidades, vejam o que está acontecendo. (sic)
CASOS PRESOS ‘SEQUESTRADOS’ NA CPPL IV (UP-ITAITINGA 4)
DENÚNCIA 1: Quando a família denuncia, aí eles pegam o preso, batem até quase morrer. Levados a três meses sem ninguém saber se estão vivos nem a família sabe (sic)
DENÚNCIA 2: Eu não tenho essa coragem de dar o nome do meu marido, na última vez que fizemos a nossa manifestação subiu eu e mais algumas para falar com o juiz corregedor alguns estão lá dentro até hoje desde março apanhado no isolamento e o diretor mostrou foi a eles os vídeos novos lá na manifestação (sic)
DENÚNCIA 3: Tem muitos lá sendo torturados psicologicamente e fisicamente. Tenho medo de só vir a notícia que mataram meu marido lá dentro. Agora eu peço que coloquem uma direção que preste, que não coloquem outros torturadores. (sic)
DENÚNCIA 4: Meu marido passa por humilhação. Depois das visitas ele fica nú e pegam nas partes íntimas dele pra ver o que tem lá dentro, se tem algo. (sic)
DENÚNCIA CASO NO CDP (UP-CAUCAIA)
Inclusive chegou um na cdp doente de tanta peia, antes da visita levaram ele pra enfermaria de lá ele não voltou depois de três dias encontraram ele no corredor nem andar o coitado conseguia foi os presos que ajudou ele. Quem está cuidando dele na sela são os outros internos. (sic)
AÇÕES
De acordo com os juízes corregedores, “as providências necessárias são avaliadas em cada caso apurado, não sendo possível fazer qualquer pré-juízo antes do momento oportuno para se analisar cada processo e seu acervo probatório de forma conjuntural”.
Os magistrados afirmam que realizam inspeções com frequência e que “a presença física dos juízes de Execução Penal nas unidades prisionais é algo cotidiano, e não apenas na quadra atual”.
“Há várias providências específicas que acabam por ser determinadas em vários processos, não apenas quanto a questões relacionadas a torturas, mas acerca de toda e qualquer irregularidade que seja constatada. Diversas recomendações constam ainda do relatório de inspeções realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no sistema prisional, em 2021, não se observando a sua implementação de forma conjuntural, porém, há que se compreender que as providências passíveis de determinação pelo Poder Judiciário são limitadas, pois a atuação judicial somente se legitima diante de constatações objetivas e sem a possibilidade de substituição à discricionariedade do Poder Executivo nas questões que lhe são exclusivamente afetas. Assim, o Poder Executivo é quem tem a capacidade, de fato, de adotar medidas aptas a impactar de forma imediata e efetiva o sistema prisional em toda a sua sistematicidade”
JUÍZES CORREGEDORES DO TJCE
A presidente do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (CEPCT), Marina Araújo, acrescenta que em 2017 o Ceará assinou pacto federativo se comprometendo a instalar o mecanismo estadual de combate à tortura, o que ainda é aguardado.
“O Ceará tem um encarceramento de pessoas com um contexto agravante de violação de direitos. Queremos destacar a importância da aprovação da minuta de Projeto de Lei que criará o Sistema Estadual de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura”, destaca Marina.
Por nota, a SAP disse reafirmar que tem compromisso prático de valorização da pessoa humana em números transparentes e incontestáveis e informa que recebe visitas regulares de instituições fiscalizadoras, como Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, além de entidades de controle social.
“O sistema prisional do Ceará virou um modelo de referência nacional em vários aspectos, com destaque para a ressocialização e a segurança física e emocional da sua população privada de liberdade. Entre os anos de 2009 até 2019, os presídios cearenses tiveram 210 presos assassinados. Desde que a SAP foi criada, em 2019, esse número caiu para 2 vidas perdidas de forma violenta, justamente nos primeiros meses de criação da Pasta quando houve reação do crime perante a reorganização do sistema penitenciário cearense e assim permanece até hoje. Os telefones celulares foram todos retirados das unidades prisionais. A SAP também esclarece que as organizações criminosas perderam qualquer capacidade de poder no sistema prisional cearense”, segundo a Secretaria.
DIRETORES AFASTADOS
Na última semana, a Justiça determinou afastamento de toda a atual diretoria da CPPL IV, em Itaitinga. A decisão foi proferida pela Corregedoria-Geral de Presídios, na segunda-feira (26) devido aos episódios de tortura contra internos registrados na unidade.
De acordo com o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), o afastamento é provisório, com prazo inicial de 90 dias. O afastamento do diretor, vice-diretor, o chefe de segurança e disciplina, o gerente administrativo da unidade, além de um policial penal também lotado no equipamento deve acontecer nas próximas 24 horas.
HISTÓRICO DE DENÚNCIAS
Desde o fim de 2021, o Diário do Nordeste noticia episódios frequentes de agressões dentro do sistema prisional cearense. Há mais de três anos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou resultados preliminares da vistoria realizada em presídios e em unidades judiciárias do Ceará, durante novembro de 2020.
Na época, a força-tarefa já tinha confirmado irregularidades como a superlotação de presos e o tratamento “cruel e degradante” no Sistema Penitenciário cearense, além de problemas no fluxo de processos, na Justiça Estadual, e fez recomendações aos órgãos estaduais.
No Sistema Penitenciário, “foram verificadas denúncias de superlotação de celas, tratamento cruel e degradante, e situações como as transferências de presos sem critério e comunicação ao Judiciário, pessoas encarceradas que não passaram por audiência de custódia e ausência de inspeções regulares dos órgãos de controle”.
CNJ, EM 2021
Em setembro de 2022, policiais penais, incluindo um diretor de presídio, passaram a ser investigados pela Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) por suspeita de torturar detentos, na Unidade Prisional Professor Olavo Oliveira II (UPPOO II) – antigo IPPOO II – em Itaitinga, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF).
O Núcleo de Investigação Criminal (Nuinc) do Ministério Público do Ceará e a Delegacia de Assuntos Internos (DAI) se desdobraram sobre diversos episódios de tortura praticados por policiais penais contra detentos do UPPOO II. Em outubro foram expedidos e cumpridos mandados de prisão contra os agentes.
Em documentos que a reportagem teve acesso foi observado que ao invés de ser um equipamento para a ressocialização, o espaço se tornou palco de sessões de tortura, com enforcamento, inalação a gás e pisões na cabeça. Dentro do antigo IPPOO II, internos foram obrigados a beber ‘asseptol’ e banhados com água sanitária, conforme depoimentos das vítimas.
Já neste ano, a reportagem publicou um caso de tortura ocorrido na Casa de Privação Provisória de Liberdade Agente Elias Alves da Silva (CPPL IV). Um dos internos foi vítima de vários tiros de bala de borracha e teve o maxilar quebrado. A família dele só soube da situação dias depois, ao tentar visitá-lo na unidade e saber que o homem estava prestes a passar por cirurgia.
Foi este episódio que resultou no afastamento dos diretores da CPPL IV.