Especialistas de Goiás avaliam como decreto federal de importação de resíduos sólidos pode afetar catadores

De acordo com o Ministério, o texto diferencia rejeitos sem valor daqueles que podem substituir matéria-prima virgem

Catador de rua trabalhando em Goiânia | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

Especialistas de Goiás avaliam o decreto do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que flexibiliza a importação de resíduos sólidos, reacendeu o debate sobre os rumos da política de reciclagem no Brasil. A medida é defendida pelo governo como um passo para fortalecer a economia circular, garantir insumos à indústria e reduzir a pressão sobre os recursos naturais.

No entanto, para especialistas, lideranças de cooperativas e representantes ambientais em Goiás, o decreto pode significar um retrocesso, abrindo espaço para que o país se torne destino de “lixo estrangeiro” e enfraquecendo a já frágil cadeia nacional de reciclagem.

De acordo com o Ministério, o texto diferencia rejeitos sem valor daqueles que podem substituir matéria-prima virgem, como plásticos, papel e vidro. A pasta argumenta ainda que o controle das importações seguirá sob responsabilidade do Ibama e que continua proibida a entrada de resíduos perigosos ou contrários à Convenção da Basileia. Além disso, o governo promete revisões periódicas para avaliar os impactos econômicos e ambientais.

Apesar das garantias oficiais, a advogada ambiental Gabriela De Val vê incoerência na forma como a proposta foi construída e divulgada. “O governo federal afirma que houve ampla discussão com catadores, cooperativas e a indústria. Mas, na prática, o que vemos é um discurso em contradição com o posicionamento de associações de catadores, que se manifestaram contra. Não faz sentido importar vidro e PET se o Brasil, um país de mais de 200 milhões de habitantes, não consegue resolver a coleta seletiva, o fechamento dos lixões e a destinação adequada do lixo doméstico”, disse ao Jornal Opção.

Para ela, o impacto negativo sobre os catadores é inevitável, uma vez que a indústria tende a priorizar insumos importados, mais baratos e em maior volume.

A presidente da Cooper Rama, Dulce Val, compartilha da mesma preocupação. Para ela, o decreto atinge não apenas as cooperativas, mas toda a cadeia da reciclagem. “Quando esse material chega de fora praticamente de graça, as indústrias compram de lá, porque sai mais barato. E o que nós coletamos com tanto esforço deixa de ser valorizado. Isso derruba o preço e inviabiliza o trabalho dos catadores, que sobrevivem exclusivamente da venda dos recicláveis”, explicou.

Dulce também questiona a representatividade das consultas anunciadas pelo governo. “Eu mesma só fiquei sabendo desse decreto pela imprensa. A maioria dos catadores, especialmente aqueles que ainda trabalham em lixões de Goiás, não tem acesso a esse tipo de informação. Quem será mais prejudicado somos nós, que estamos na base”.

Do ponto de vista técnico, o gestor ambiental Marcos Cabral destaca que a proposta não dialoga com a realidade brasileira. Ele lembra que o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), instituído em 2022, estabelece metas ambiciosas, como a recuperação de 50% dos resíduos sólidos urbanos em 20 anos. Hoje, porém, apenas 2,2% são reciclados.

“Grande parte dos municípios ainda destina seus resíduos a lixões a céu aberto, sem qualquer estrutura. É inviável pensar em importação quando não conseguimos estruturar a logística reversa e a coleta seletiva no país. Na prática, esse decreto favorece a indústria de transformação, mas ignora o gargalo social e ambiental”, avaliou.

Já o presidente do Sistema OCB/GO, Luís Alberto Pereira, considera que a legislação até poderia prever a importação em alguns casos, mas com regras claras para proteger os catadores. “É fundamental priorizar os resíduos nacionais, dando preferência às cooperativas e catadores. Isso exige instrumentos concretos, como crédito subsidiado, incentivos fiscais e mecanismos de participação nos comitês que vão definir cotas e critérios para a importação. Caso contrário, corremos o risco de fragilizar ainda mais a cadeia local, que já é subvalorizada”, defendeu.

Ele cita como exemplo o “Movimento Reciclar”, lançado recentemente em Goiânia, que reúne 28 entidades e mais de 70 propostas para fortalecer a reciclagem até 2033, ano do centenário da capital. O objetivo é elevar a taxa de reaproveitamento dos resíduos para 50%, consolidando a infraestrutura, promovendo campanhas de conscientização e garantindo a inclusão socioeconômica dos catadores. “Essa é a direção que precisamos seguir: fortalecer a cadeia nacional, gerar empregos verdes e promover uma verdadeira economia circular. Importar resíduos não resolve os problemas estruturais do Brasil”, completou.

Enquanto isso, o governo federal mantém a defesa da medida e reforça que os impactos serão monitorados. Mas, em Goiás, a percepção entre especialistas, gestores e cooperativas é de que o decreto cria mais riscos do que soluções. O temor deles é que, em vez de impulsionar a reciclagem, a flexibilização fragilize ainda mais o setor, aprofundando desigualdades e mantendo milhares de famílias de catadores à margem de uma política pública que deveria oferecer dignidade e sustentabilidade.

FONTE : JORNAL OPÇÃO

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