Jogador comemora volta à Europa aos 40 anos e analisa atuais goleiros de Fla e Timão
Imagine você jogar em São Bernardo do Campo, no interior de São Paulo, pela Série C do Campeonato Brasileiro e dias depois disputar uma partida em Klaksvík, pequena cidade de quase cinco mil habitantes nas Ilhas Faroé, pelas fases iniciais da Champions League. Parece um “rolê aleatório” até mesmo para quem viveu essa mudança brusca: o goleiro Felipe. Aquele mesmo, ex-Flamengo e Corinthians, lembra dele? Aos 40 anos, ele acaba de trocar o Sampaio Corrêa pelo Differdange, de Luxemburgo, e contou a experiência em entrevista exclusiva ao ge:
– É aquele famoso rolê aleatório que o pessoal todo fala, né? Está sendo muito legal para mim. Com 40 anos, não falo nem idade porque a gente vê o Fábio com 43, vai fazer 44 sendo sem sombra de dúvida um dos melhores goleiros do país. Mas quando você dá um salto da Série C para uma Champions ninguém acredita: “O empresário desse cara deve ser bom” (risos). A gente escuta alguns comentários, dá risada, mas é trabalho. Eu não estava em casa comendo e dormindo, estava jogando, fazendo bons jogos. Tive essa oportunidade e não tem como recusar. “Ah, é pré-Champions”. Eu falei: “Cara, é Champions, você vai ouvir a música” (risos) – brincou o goleiro, lembrando de provocações que ouviu:
– Eu comecei o estadual no Sampaio, que é o maior time do Estado, maior campeão do Estado, e os torcedores assim antes dos jogos: “Caramba, Felipe, que final de carreira esse seu, hein? Que m***! Você tá no Maranhão”! E eu ali, dando a minha vida pelo Sampaio, tentando dar o meu melhor, como eu sempre faço. Hoje eu fico imaginando esse cara que falou isso quatro meses atrás e agora me vê jogando a Champions League, velho (risos). Só o futebol pode proporcionar isso.
Goleiro Felipe no treino do Differdange — Foto: Divulgação
Felipe está de volta à Europa 14 anos depois de levar o Braga, de Portugal, à fase de grupos da Champions. E tenta repetir o feito agora pelo modesto Differdange, clube que leva o nome da cidade que tem cerca de 25 mil habitantes e possui no elenco jogadores que conciliam as carreiras com outras profissões. O goleiro, que assinou contrato até junho de 2025 prorrogável por mais uma temporada, perdeu na estreia por 2 a 0 para o KÍ Klaksvík, nas Ilhas Faroé. O time faz a partida de volta em casa nesta quarta-feira, às 14h (de Brasília), precisando vencer por três gols de diferença para avançar e enfrentar o Malmö, da Suécia, no segundo dos quatro mata-matas antes da fase de grupos. Se não conseguir, a equipe vai para os play offs da Liga Europa.
Veja outras respostas de Felipe na entrevista exclusiva ao ge em que também analisou os atuais goleiros de Flamengo e Corinthians:
ge: como surgiu esse convite inusitado para voltar à Europa aos 40 anos?
Felipe: – Eu não posso mentir, falar que estava esperando isso: oito meses atrás eu estava jogando a Segunda Divisão do Campeonato Paraense… Aí consegui me destacar lá, fui para o Sampaio, chegamos à terceira fase da Copa do Brasil, campeão estadual… E vira e mexe você recebe uma mensagem de algum empresário perguntando se tem interesse, mas nunca passa de conversa, né? Um dia após o estadual, que a gente conquistou e eu fui eleito o melhor em campo, recebi uma ligação de um empresário, Bruno Araújo, perguntando se tinha interesse de ir para fora, que tinha um clube interessado. Mas não levei muito a sério. Viajei para São Paulo para jogar contra o São Bernardo e após o jogo realmente tinha a proposta oficial do clube. Tomei aquele susto porque não estava esperando. Aí liguei para minha esposa, fiquei praticamente uma hora sozinho no hotel pensando, refletindo, porque vamos ser justos: com 40 anos você está muito mais perto do final do que do início.
– Meu contrato era até o final do ano, e o Sampaio não vivia um bom momento na Série C. Pensei: “Se a gente não conseguir se classificar, em agosto eu estou sem clube porque a primeira fase acaba. E eu já joguei fora do Brasil, sei de toda dificuldade, de clima, de comunicação…” Aí quando eles falaram dois anos… E lá fora é um jogo por semana, qualidade de vida, você treina menos… Tudo isso pesou. O que ajudou também é que tem muito brasileiro aqui na cidade, a comissão técnica é toda portuguesa, tem mais três brasileiros no time, cinco portugueses… Acabou sendo uma surpresa para todo mundo, até para mim (risos). Conversei com o pessoal do Sampaio, expliquei a situação, eles foram bem honestos, bem corretos: “Você nos ajudou bastante, se quer ir a gente vai deixar sem problema nenhum”. E foi isso que aconteceu, esse famoso rolê aleatório, que é a moda agora falar (risos).
Felipe estava no Sampaio Corrêa — Foto: Ronald Felipe/SCFC
Você já passou por Portugal e Hungria antes, mas como está a adaptação a Luxemburgo? Já passou algum perrengue aí?
– Vim preparado para o verão, trouxe bastante roupa de calor, mas está um frio desgraçado aqui (risos). A gente fez um contrato até o meio do ano e eu tenho a opção de ficar mais um para saber se gostou ou não. Porque eles falam muito aqui na relação do frio, mas eu joguei na Hungria, peguei -25 graus lá, então sei como é. Mas o que pegou lá era praticamente a língua, só tinha o Anderson Pico, que jogou no Flamengo comigo, e outro brasileiro. Na cidade inteira não tinha outro português ou brasileiro. O inglês eu entendo mais do que falo, mas eles não faziam questão de falar inglês também. Aqui 40% da cidade fala português porque tem muitos portugueses. Você vai numa cafeteria, quem te atende é um português. Vai num restaurante, quem te atende é um português. Já encontrei vários brasileiros, vários torcedores do Flamengo aqui, vários torcedores do Corinthians. Então isso facilita demais.
– Acho que a única dificuldade aqui é locomoção, porque Luxemburgo é muito pequeno, é difícil ter local para morar, e hoje moro na França com outros três brasileiros. Dá 25, 30 minutos de carro para o treino. Outros jogadores moram na Bélgica, na Alemanha, que é tudo na fronteira. O treino é sempre no final da tarde, às 17h30, 18h, e está claro ainda. Como é verão, escurece só 22h30, 23h. Uma vez na semana a gente treina em dois períodos, alguns jogadores do clube trabalham, então quando treina de manhã não estão todos do elenco. Os estádios aqui são pequenos, o maior é o da capital com capacidade de12 mil pessoas só. Mas são sempre bons gramados. Aqui temos dois estádios, um é antigo usado para treino com dois campos, um de sintético porque no frio os campos congelam, e a gente já começa a se preocupar (risos). Mas perto do que era na Hungria aqui está bem tranquilo.
Felipe comemora a vitória do Braga sobre o Sevilla, pela Champions de 2010/11 — Foto: EFE
Vocês perderam o primeiro jogo da Champions de 2 a 0. Acha que dá para classificar?
– Perdemos o primeiro, mas a gente está confiante porque fez um bom jogo. Lá era muito pequeno o campo, sintético, estava muito frio nas Ilhas Faroé. Então a gente sentiu um pouco de dificuldade, mas o time está confiante pelo que apresentou no primeiro jogo. Foram 26 chances de gol contra cinco deles. Eles deram três chutes no gol: foi uma falta, um gol de pênalti e o gol. E a gente teve muitas chances. Então sendo agora em casa, o campo maior e com grama normal, a gente acha que vai conseguir reverter. E não passando você tem chance na Liga Europa. A ideia do clube é entrar em uma fase de grupos dessas competições europeias, acho que eles nunca conseguiram chegar tão longe. Quando eu cheguei ao Braga em 2010, o clube nunca tinha jogado passado do mata-mata da Champions, e a gente foi para a fase de grupos. Quem sabe consiga fazer história aqui também?
Você viveu os melhores momentos da sua carreira por Flamengo e Corinthians. Se tivesse que eleger o melhor momento em cada clube, qual escolheria?
– Ah, sem dúvida 2009 no Corinthians e 2011 no Flamengo. Em 2013 ainda fui bem também, teve a Copa do Brasil, mas individualmente os meus melhores momentos são no Corinthians em 2009, quando cheguei a ser cogitado até para ir para a Seleção, e em 2011 quando o Flamengo ficou 25 ou 26 jogos invicto. E eu cheguei num momento complicado, o Bruno tinha acabado de sair, então era uma pressão muito grande para qualquer goleiro que chegasse ao Flamengo naquele momento para assumir o posto dele, e no meu primeiro campeonato já pude ser feliz pegando pênaltis contra o Fluminense e Botafogo. E o Bruno era um dos grandes pegadores de pênaltis na época, então eu já tive que chegar mostrando também que podiam contar comigo. Então aquele ano para mim foi muito importante no Flamengo, e no Corinthians no ano que o Ronaldo estava lá.
No Flamengo, você participou do início da reestruturação do clube, principalmente com o título da Copa do Brasil de 2013. Como é ver como o time está hoje? Se sente um pouco responsável?
Felipe com o troféu de campeão da Copa do Brasil de 2013 — Foto: Getty Images
– Ah, lógico, todo mundo que viveu aquele início de 2013. O Bandeira (de Mello, ex-presidente) falou, ninguém acreditava, né? Hoje o pessoal bota tapete vermelho para o Bandeira, mas na época a gente sabe o quanto eles sofriam, quantas críticas recebiam principalmente da imprensa e dos torcedores. Ele falava que não tinha condições de contratar jogadores a nível de Flamengo, mas que em cinco, seis anos, o Flamengo ia ser potência. As próprias pessoas que andavam com ele riam. Ninguém acreditava. E se o Flamengo é o que é hoje, é muito graças aos atletas que passaram nesse período, mas muito graças ao Bandeira. Na primeira reunião dele os jogadores riram que nunca ouviram um presidente falar isso, que não estava preocupado com título, queria que o clube não caísse e que em três, quatro anos, ele iria fazer o Flamengo uma potência. E virou, né?
– Quando começou essa reformulação, essa revolução que o Flamengo fez no futebol brasileiro, eu estava naquele início. A gente fica satisfeito por isso também. A mesma coisa no Corinthians. Ronaldo chegou, começou a sair o estádio, CT, a ganhar todos os títulos possíveis… Começou ali no início de 2009 e eu estava lá também (risos). Não foi por acaso, nas duas maiores reformulações, nas duas maiores mudanças dos maiores clubes do país, o Felipe estava lá. Quando tiver uma foto de início, desses momentos aí, minha carinha vai estar lá. Então não caí de paraquedas, eu estava ali num pedacinho da história, então fico feliz de ter participado disso.
Uma frase que te marcou depois do título carioca de 2014 em cima do Vasco foi: “Roubado é mais gostoso”. Você se arrepende dela, ou faz parte da resenha?
– Eu não me arrependo porque até hoje eu digo que não falei. Eu sempre bati nessa tecla, sempre fui um cara taxado como polêmico porque falava o que eu pensava, sempre fui verdadeiro, e no futebol às vezes isso te complica. Às vezes você paga um preço muito caro por causa disso, e eu acabei pagando também. Mas essa é uma das poucas vezes que eu discordo porque eu não tenho certeza se falei. Eu até brinco, a minha esposa é vascaína. A gente começou (a namorar) um ano depois. E a primeira coisa que ela me falou foi isso, e eu: “Cara, eu não falei”. Hoje ela me defende porque não tem nenhum vídeo ou áudio. O momento que o jogador fala m*** é quando acaba o jogo, se você der tempo de ir para o vestiário tomar banho, baixar a adrenalina, o cara não vai falar mais nada.
– O vídeo que tem meu ainda dentro de campo, colocando a camisa de título, aí o cara fala: “Felipe, ganhar desse jeito”, e eu falo assim: “Ganhar desse jeito é mais gostoso”. Eu não sei se na época, como o gol foi irregular, deduziram: “Ah, o Felipe falou que ganhar desse jeito roubado é mais gostoso”. E jogaram ao vento. Eu falei que o Vasco estava jogando Campeonato Paulista, há 10 anos não ganhava, isso eu falei. Era parte da zoeira, da brincadeira. Tem um vídeo meu no outro dia pedindo desculpa porque foi uma briga, pessoal me ligando da imprensa, do clube, presidente, de todo o mundo. Mas o “roubado é mais gostoso” ninguém tem um vídeo ou áudio depois de 10 anos. Mas aí pegou na torcida já era. Mesmo dizendo que não falei, passo na rua e brincam: “E aí, roubado é mais gostoso”?
– Minha frase era sobre o jogo, a torcida já estava gritando “é campeão”, os caras no banco de reservas já comemorando. Então eu falei sobre ganhar desse jeito, o gol no final, lembrando a época do gol do Pet de 2001. Até então eu não sabia que o gol tinha sido irregular, era no campo, não tinha VAR. A gente estava comemorando ainda e eu falei: “Ganhar desse jeito é mais gostoso”. A gente só foi saber depois que o gol foi irregular.
Felipe ao lado de Ronaldo no Corinthians em 2009 — Foto: Daniel Augusto Jr /Ag. Corinthians
E falando um pouco do Corinthians, só esse ano o clube viu dois goleiros saírem, o Cássio e o Carlos Miguel. Como você, de longe, viu essa situação?
– Eu passei por uma situação parecida com a do Carlos Miguel, né? Quando saí foi assim também. Cara, para ele ter saído, tem alguma coisa ali. E do Cássio também, maior goleiro da história do Corinthians. Ninguém sai de um clube assim à toa, tem alguma coisa por trás que só eles mesmos podem falar. O Carlos Miguel tinha um futuro muito brilhante com a camisa do Corinthians. Na minha humilde opinião, nos próximos anos certamente vai ser o goleiro da Seleção, pela capacidade que ele tem. Mas para ele ter saído de uma equipe tão grande como o Corinthians, alguma coisa tem. Não sei se os dirigentes, algo tem lá dentro. Na minha época, foi meio que parecido. A minha questão foi com dirigente, e aí fica feio sempre para o atleta, né?
– Mas a gente sabe que uma moeda tem dois lados. Esses dia até vi uma entrevista do Carlos Miguel falando que ninguém chamou ele para conversar e tal. Então é difícil, só o atleta mesmo que pode responder. Para o torcedor do Corinthians é muito ruim você perder dois grandes goleiros em praticamente um mês, um sendo o seu maior ídolo recente ou o maior ídolo da história do clube e outro uma grande promessa. Então é bem complicado, mas o Hugo (Souza) chegou lá, conheço ele desde que começou no Flamengo, acho que é um goleiro que tem a cara do Corinthians também. Se ele estiver com a cabeça boa, vai dar muitas alegrias à torcida do Corinthians.
Por fim, quem está melhor de goleiro hoje, o Flamengo com Rossi ou o Corinthians com o Hugo Souza?
– Ah, o Rossi está mais consolidado, né? O Flamengo hoje vive um momento mais tranquilo. Corinthians é igual Flamengo, é oito ou 80, não tem meio termo. Ou você está muito bem ou muito mal. O Hugo ainda não chegou (a entrevista foi antes da estreia do goleiro na última terça), o Matheus (Donelli) está enfrentando já umas certas resistências lá dentro, então o Hugo vai ter que trabalhar bastante para poder amenizar aquela situação no Corinthians. O Rossi hoje vive uma situação bem estável, bem tranquila, já se firmou, caiu nas graças do torcedor. Mas eu creio que o Hugo tem muitas condições de chegar lá e dar alegria ao torcedor do Corinthians.
Fonte: ge.com