Brasil, Reino Unido, França, Bélgica, Alemanha e Paraguai foram alguns dos países que instalaram restrições à modalidade feminina.
20/07/2023
A ex-jogadora da seleção brasileira Miraildes Maciel Mota, mais conhecida como Formiga, nasceu em Belo Horizonte em 3 de março de 1978, um ano antes da prática do futebol feminino ser legalizada do Brasil.
Isto é, as mulheres só foram autorizadas a praticar o esporte no país há 44 anos, após quase quatro décadas de proibição.
E esse tipo de veto não foi exclusividade do Brasil. Reino Unido, França, Bélgica Alemanha e Paraguai foram alguns dos países que também instalaram restrições à modalidade feminina. Entenda a seguir.
Brasil e o decreto 3.199
Apesar de não ser o único, o caso do Brasil é um dos mais emblemáticos e conhecidos quando se trata da proibição às mulheres no futebol.
Isso porque, diferentemente de outros países, o governo não impediu apenas a existência de associações feminina no esporte, mas a prática da modalidade como um todo.
O veto foi publicado em forma de lei, durante o regime de Getúlio Vargas, em 1941.
O decreto 3.199, que estabelecia “as bases de organização dos desportos em todo o país”, afirmava em seu artigo 54 que “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”.
Além do futebol, também eram vetados esportes considerados mais duros, como qualquer tipo de luta.
O documento não mencionava sanções, dando margem para que cada delegacia impusesse as suas. Não há registros, no entanto, de mulheres presas por violar a ordem. Geralmente, elas eram detidas e liberadas logo após prestar depoimento.
A legislação seguiu o aumento da popularidade do futebol feminino entre as décadas de 30 e 40, segundo a historiadora Aira Bonfim, especializada em futebol feminino.
De acordo com a especialista, o esporte acabou encontrando uma resistência na sociedade da época, o que motivou a proibição.
Além disso, a realização de um jogo exibição entre dois clubes do subúrbio carioca, Casino do Realengo e Sport Club Brasileiro, compostos totalmente por mulheres, no recém-inaugurado Pacaembu, causou polêmica, dividindo a opinião pública e a imprensa. A partida ocorreu em maio de 1940, cerca de um ano antes do decreto da proibição.
Enquanto parte da sociedade apoiava a iniciativa, a outra metade a repudiava, apoiada no contexto social conservador da época e na ideia predominante de que homens e mulheres deveriam desempenhar papéis específicos.
Bonfim afirma ainda que uma carta de um cidadão carioca chamado José Fuzeira, endereçada diretamente ao presidente Vargas e divulgada 10 dias antes da partida, ajudou a construir o discurso que levou ao veto.
O documento argumentava principalmente que o futebol era um esporte violento, que poderia “afetar, seriamente, o equilíbrio psicológico das funções orgânicas” e prejudicar a capacidade das mulheres de serem mães.
“Essa carta é publicada em alguns dos jornais da época, chega ao conhecimento público com muita rapidez e se espalha”, afirmou Bonfim à BBC Brasil.
“Mas a verdade é que ninguém estava, de fato, preocupado com essa ideia da saúde biológica ou com as mulheres se machucarem”, diz. “O que havia era um certo preconceito, principalmente porque muitas das jogadoras eram de estratos sociais mais baixos.”
“Elas eram ainda muitas vezes associadas a uma disrupção social, como se elas fossem prostitutas ou fizessem coisas que não podiam ser ditas naqueles ambientes.”
Mas para a historiadora Brenda Elsey, professora da Universidade Hofstra e autora do livro Futbolera: A History of Women and Sports in Latin America, a saúde ou fertilidade das mulheres não era a verdadeira preocupação dos apoiadores da lei.
“Na década de 1940 já se sabia muito bem que o esporte não era prejudicial. Na verdade, havia toda uma escola no Rio de Janeiro desenvolvendo pesquisas sobre como a atividade física beneficiava a saúde materna”, diz.
“Ou seja, tudo não passou de uma tática para limitar a liberdade das mulheres, suas atividades no tempo livre e sua capacidade de expressão, além de uma grande demonstração de homofobia.”
O decreto 3.199 vigorou por 38 anos. E apesar da revogação em 1979, o futebol feminino só foi devidamente regulamentado em 1983.
Apesar da proibição, muitas mulheres nunca deixaram de jogar e criaram estratégias para burlar a lei, segundo especialistas. Algumas se vestiam como homens ou jogavam à noite, em espaços privados. Outras corriam em várias direções quando eram descobertas para desorientar os policiais e evitar serem detidas.
Ainda assim, segundo Júlia Barreira, professora do curso de Educação Física da Unicamp, o período de proibição afetou profundamente o desenvolvimento do futebol feminino no Brasil.
“As meninas e mulheres desafiaram o decreto, ocuparam os campos de várzea e se organizaram em espaços periféricos para continuar praticando a modalidade, mas perderam totalmente as competições e organizações esportivas que as apoiavam”, diz.
“Passamos quase quatro décadas sem competições oficiais para que elas praticassem e se desenvolvessem, estrutura para apoiá-las ou formação de treinadores e treinadoras com qualificação para trabalhar especificamente com esse grupo.”
Para Barreira, esse passado ajuda a explicar a atual situação do esporte no país: enquanto a seleção masculina é a mais bem-sucedida da história do futebol mundial, com cinco títulos em Copas do Mundo, a melhor posição conquistada pelo time feminino foi o segundo lugar na Copa de 2007.
Reino Unido
Outro caso bastante estudado de veto ao futebol feminino é o do Reino Unido.
Durante a Primeira Guerra Mundial, muitos homens que jogavam futebol foram convocados para servir e a liga de futebol inglesa teve que ser suspensa. Isso criou uma lacuna que começou a ser preenchida pelas mulheres.
Elas já estavam conquistando mais espaço na sociedade ao ocuparem empregos em fábricas pela primeira vez – novamente porque a maioria dos homens tinha ido lutar – e, para se manter em forma, muitas começaram a jogar futebol.
Nesse contexto, as grandes fábricas de armamentos e outros suprimentos começaram a organizar torneios entre seus times femininos para fins de caridade.
Uma das equipes, chamada Dick, Kerr’s Ladies, se tornou um dos melhores times do futebol feminino durante a guerra e até viajou em turnê para enfrentar outras equipes. Alguns de seus jogos atraíram mais de 50 mil espectadores.
As Dick, Kerr’s Ladies também contaram com uma das maiores artilheiras de todos os tempos da Inglaterra, Lily Parr. Ela marcou quase mil gols em sua carreira.
Mas com a popularidade, cresceu também a preocupação de que o sucesso do futebol feminino prejudicasse a atenção recebida pelo masculino assim que a guerra terminasse.
A Federação Inglesa de Futebol (FA) não tinha o poder de proibir totalmente qualquer mulher de jogar, mas determinou em 5 de dezembro de 1921 que os jogos femininos estavam proibidos nos campos de futebol afiliados à FA.
A versão oficial da proibição usa uma justificativa semelhante a que seria dada pelas autoridades brasileiras anos depois: a de que a prática do futebol é ruim para a saúde das mulheres e sua fertilidade.
E embora não tenha havido uma proibição total do futebol feminino, a determinação limitou a atuação dos times e desviou os holofotes das mulheres. Sem a receita da venda de ingressos para cobrir as despesas das jogadoras, a maioria dos clubes se desfez.
A proibição só foi suspensa quase 50 anos depois, em 1969, após pressão da Fifa (Federação Internacional de Futebol) sobre a FA. Em seguida, a Associação de Futebol Feminino (WFA) foi formada.
Europa e Paraguai
O veto de 1921 na Inglaterra se espalhou também por outros países da Europa.
Na Alemanha, o futebol feminino profissional foi proibido entre 1955 e 1970. A determinação valia apenas para a Alemanha Ocidental, onde as jogadoras não podiam participar de campeonatos e os clubes que permitiam que mulheres jogassem em suas dependências eram sancionados.
Segundo a Federação Alemã de Futebol, o “esporte agressivo” era incomum “à natureza da mulher”.
Na década de 1920, a Bélgica instalou uma proibição semelhante, usando as mesmas justificativas médicas infundadas dos países vizinhos.
O veto durou até 1970, quando a Real Associação Belga de Futebol permitiu que os clubes de futebol masculino criassem seções femininas após pressão internacional e dos próprios jogadores.
Na França, durante o governo de Vichy, que dividiu entre 1940 e 1944 a administração do território do país com a própria Alemanha, a prática do esporte pelas mulheres foi proibida em 1941.
Após anos de prática clandestina, a Federação Francesa de Futebol só reconheceu oficialmente a existência do futebol feminino em março de 1970.
Além disso, segundo historiadores, há registros de proibições semelhantes no Paraguai e na antiga Iugoslávia.
No país sul-americano, um decreto de 1960 também proibia as mulheres de jogar, alegando que o esporte ia contra a “natureza de mulher” e poderia afetar sua fertilidade.
A medida só foi revertida mais de 30 anos depois e o primeiro torneio de futebol feminino experimental nacional realizado em 1997.
“Em muitos casos, à medida que o esporte se torna mais popular e parte importante da identidade nacional dos países, as mulheres são afastadas pelos homens e pelas organizações no controle”, diz a historiadora Brenda Elsey.
Ainda segundo Aira Bonfim, por mais que não existam proibições em forma de lei ou decretos que impeçam a formação de ligas nacionais de futebol feminino atualmente, vetos ainda são aplicados na forma de falta de investimento ou estrutura.
“Quando não se estrutura (o futebol feminino), é quase como proibir”, diz. “Há cada vez mais condições que vão dificultar que países menores ou mais pobres tenham representatividade dentro das classificações para chegar numa Copa do Mundo.”
Fonte: G1