Dois preceitos orientam a atuação do aparato repressor estatal para manter a ordem e a lei: (i) o dever de eficiência, eficácia e efetividade no combate à criminalidade; e (ii) o respeito aos liames do ordenamento jurídico instituído pelo Estado Democrático de Direito. Esse papel portentoso e indisponível do Estado no Brasil é assumido pelas forças policiais, com base no artigo 144 da Constituição Federal, que assenta a tese do “monopólio da violência legítima”, como afirmava Max Weber, já em 1918. Sua ação dirige-se a três objetos: preservar: (1) a ordem pública e a (2) incolumidade das pessoas e (3) o patrimônio, segundo os valores da cidadania e dos direitos humanos.
Para enfrentar ocorrências delitivas contra a sociedade, as polícias precisam ser previdentes e vigorosas. Inclusive sob pena de se tornarem vítimas de delinquentes audazes. As diversas modalidades criminosas avançaram sobremaneira e a sofisticação, a ousadia e o poder das organizações criminosas, nos últimos anos, trazem imensa complexidade à segurança pública. Daí nasce o dilema: é possível combater o crime agindo dentro dos limites estritos da lei? Nesse contexto, as câmeras de vigilância corporal diminuem a letalidade policial?
Designadamente sobre o monitoramento por câmeras, a novidade surgiu na Inglaterra, em 2005. Tomou corpo nos Estados Unidos da América, com os rumorosos casos de ação de oficiais (predominantemente brancos) contra cidadãos (predominantemente negros), com resultado morte e grave comoção social. Todavia, a base estruturante do modelo brasileiro assenta-se em normas ultrapassadas e em padrões de atuação cultural e historicamente violentos.
Pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2021), em 2020, Goiás ocupava o segundo lugar em letalidade policial, com 8,9 mortes para 100 mil habitantes, abaixo apenas do Amapá, que contava quase 14 mortes para 100 mil habitantes. Hoje, Goiás é o campeão disparado em “mortes violentas sem causa identificada”, com o louvor despudorado e efusivo das autoridades instituídas, respaldado em duvidosa aceitação popular. Isso sem falar nas graves violações aos direitos humanos nos presídios, divulgadas em relatório pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), suscitando tortura, maus tratos e outras gravíssimas ofensas à legislação; ratificando, inclusive, inspeções anteriores produzidas por diversas entidades e instituições, como, por exemplo, a Pastoral Carcerária, Defensoria Pública e a OAB/GO. E, até agora, o relatório da mais alta Corte de Justiça do país (STF/CNJ), não produziu nenhum efeito. Absolutamente nenhum!
Pergunta-se, então: o simples gasto com câmeras de vigilância corporal, destinadas a vigiar e punir os policiais por eventuais ações em confronto, resolverá o problema da letalidade, diante do padrão de violência instituído e da obsolescência das normas, sem projetos ou ações de aperfeiçoamento do modo de ação, das técnicas, das táticas, de revisão da formação ou da qualificação mínima das polícias?
Ora, certamente as câmeras podem ser inibidoras de excessos. Contudo, letalidade policial é efeito e não causa da violência social sistêmica e endêmica, fruto de múltiplos fatores. Além disso, a aplicação de soluções tecnológicas tais deve ser auditável, possuir mecanismos que impossibilitem a sua manipulação pelos próprios usuários.
Câmeras diminuem a letalidade policial? Há estudos que dizem sim e outros inconclusivos. Porém, se quisermos, mesmo, uma polícia respeitada e respeitosa, precisamos atacar as causas da violência e não os seus efeitos. Caso contrário, continuaremos vítimas de um sistema arcaico, caro e contraditório, com modelo legislativo obsoleto, que não resolverá o problema e apenas retroalimentará o deletério círculo vicioso da beligerância entre Polícia e Sociedade.
EDEMUNDO DIAS DE OLIVEIRA FILHO: Ex-Delegado Geral da Polícia Civil de Goiás e Presidente do Conselho Nacional de Chefes de Polícia do Brasil. Advogado. Especialista em Políticas Pública (UFG). Mestre em Direito Público (Extremadura/Espanha)
Fonte: A Redação