Ondas de calor serão mais comuns? Especialistas explicam

Mudanças bruscas de temperatura são influenciadas por ações humanas

O que os brasileiros vivenciaram no inverno de 2023 foi uma onda de calor que não condiz com a estação do ano. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o inverno deste ano foi um dos mais quentes desde 1961.

Diversas cidades ultrapassaram a máxima de 40ºC e a expectativa é que a primavera, que começou no último sábado (23), continue quente.
Mas não é apenas no Brasil que esse evento está ocorrendo: entre junho e julho, o hemisfério norte enfrentou um dos verões mais quentes já registrados. Mas o que está causando esses eventos climáticos intensos?


Segundo o estudo feito pela World Weather Attribution (WWA), o calor registrado no hemisfério norte em junho e julho de 2023 só ocorreu por ações da humanidade. De acordo com o estudo, esse reflexo de clima seria “impossível” sem as ações humanas que induzem as mudanças climáticas.

Isso será uma tendência? De acordo com os pesquisadores ouvidos pela CNN, sim. Se o mundo não diminuir as ações que contribuem para o aquecimento global, mudanças como as ondas de calor serão mais intensas e mais duradouras.

Com a temperatura da terra subindo, eventos climáticos extremos – como essas ondas de calor, além de tempestades e outras tragédias naturais – serão cada vez mais frequentes.

“Esse ano particular agora não dá mais espaço para aquelas visões céticas do aquecimento global”, explica Ricardo de Camargo, professor de Meteorologia do IAG/USP. “É indubitável: todas as evidências estão aí saltando aos olhos de todos e não há negacionismo que sustente diante de tantas alterações”.

Segundo informações do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, o aumento das temperaturas está mudando os padrões climáticos – por isso invernos mais quentes e ciclones mais frequentes, além de tempestades mais destrutivas.

Ainda segundo o órgão, desde 1980 a década mais recente tem sido mais quente que a anterior e todas as áreas do mundo têm registrado ondas de calor, enquanto as temperaturas do Ártico aumentaram pelo menos duas vezes mais rápido que a média global.

Além da onda de calor, o Brasil também foi atingido pelas chuvas causadas por um ciclone extratropical. Como resultado, o Rio Grande do Sul contabilizou pelo menos 48 mortes.

De acordo com a Organização Meteorológica Mundial, também da ONU, os anos entre 2015 e 2022 foram os mais quentes já registrados; e tem 98% de chance de pelo menos um ano entre 2023 e 2027 ultrapassar o recorde.


Além disso, julho de 2023 foi o mês mais quente dos últimos 120 mil anos do planeta.

“Como o planeta está mais quente, nós vamos ter naturalmente mais ondas de calor e mais calor”. explica Karina Lima, doutoranda em Climatologia (UFRGS) e divulgadora científica.

“Mas as mudanças climáticas também influenciam nos eventos extremos relacionados a chuva e a falta dela, porque uma atmosfera mais quente tem a capacidade de reter mais umidade. De forma geral, a gente já está observando mais extremos de chuvas e secas ao mesmo tempo, então regiões que já tem uma predisposição a secas se tornam ainda mais secas”.

Ainda segundo a pesquisadora, a falta de preparo e resistência para ocasiões extremas, como quando recebemos mais chuva do que esperado, acaba resultando em desastres.

Para determinar, de fato, se o evento extremo foi causado por consequência do aquecimento global, é necessário realizar um estudo de atribuição.

“Mas, mesmo antes de um estudo de atribuição de cada evento extremo, a gente está observando de forma sistêmica que esses eventos extremos estão muito piores”, continua Karina.

“Estão ocorrendo mais e estão mais extremos. A gente já está num contexto que a atmosfera, o oceano e a superfície terrestre estão mais quentes, então é quase impossível que isso não influencie os fenômenos que seriam naturais. Então mesmo que o fenômeno fosse ocorrer de qualquer maneira, ele vai ter condições para se intensificar e se tornar pior”.

Segundo Ricardo de Camargo, o extremismo já está ocorrendo. “A questão que se colocava desde o início quando foram identificadas os primeiros indícios das mudanças climáticas, do aquecimento global, é que os eventos extremos iriam continuar acontecendo e seriam mais extremos do que a gente conhecia até então. E é justamente o que a gente está vendo, né?

Igor Travassos, porta-voz da Justiça Climática do Greenpeace, explica que as ondas de calor são reflexo das mudanças climáticas. “Isso [as mudanças de temperatura] é consequência [do aquecimento global], inclusive do aumento de gás de efeito estufa na atmosfera que potencializa os efeitos que seriam naturais e orgânicos do globo”, diz.

“Mas com as mudanças climáticas, vira anormal essas mudanças de temperatura que estariam dentro da normalidade, do padrão de regulação da temperatura da Terra. A gente passa então a conviver com eventos climáticos desregulares extremos”.

“Essas mudanças estão a caminho de se tornar cada vez mais frequentes”, continua Travassos. “Mais ondas de calor, mais intensas e mais frequentes”.

Além disso, o aquecimento global também potencializa o aumento de queimadas, como foi possível observar com o recorde de incêndios no Pantanal em 2020 ou os incêndios no Canadá neste ano. “Temos um nível de aquecimento global muito maior e como é muita energia em um sistema, é muito calor, então isso vai contribuir nas queimadas, para regiões que já sofrem com as secas”, explica Karina.

“Com o aquecimento, existe um aumento muito grande das temperaturas mínimas e das temperaturas noturnas também, então existe um período pequeno de alívio térmico e isso contribui para incêndios”.


As ondas de calor, tempestades e ciclones extratropicais são efeito das mudanças climáticas causadas pelo aquecimento global, mas o que o Brasil tem enfrentado recentemente também é influenciado pelo El Niño.

Segundo Karina Lima, o fenômeno – que é natural – causa aumento de calor no oceano. Ele ocorre de maneira cíclica: o El Niño se forma, passamos por uma fase neutra e o El Niño se forma novamente. No entanto, segundo a pesquisadora, o aquecimento global pode estar contribuindo para maior variabilidade e intensidade do fenômeno.

“O El Niño impulsiona as temperaturas globais e maior umidade em algumas regiões, e a própria circulação atmosférica ele modifica um pouco em algumas regiões.

No Sul, por exemplo, vamos ter mais umidade, condições atmosféricas favoráveis até para a intensificação de ciclones, que estão tendo todas as condições para se fortalecerem”, explica. Com o aquecimento global, no entanto, esses ciclones ficam mais destrutivos.

Como impulsiona a temperatura da terra, o El Niño causa o efeito de aumentar a temperatura do ano seguinte.

“Esse ano de 2023 já tem grandes chances de ser o ano mais quente do período instrumental e 2024 tem tudo para superar o ano de 2023”. argumenta Karina, ao informar que o ano após o desenvolvimento do El Niño é sempre mais quente do que o ano de sua formação.

Com o aquecimento global, a temperatura então possui mais influências para subir.

Mas qual é o principal fator do aquecimento global?
Karina Lima explica que o aquecimento global é feito pelo aumento de emissões de gases de efeito estufa, principalmente pela queima de combustíveis fósseis. “Então a gente está com esse efeito estufa potencializado, colocando essa grande concentração de gases de efeito estufa na atmosfera”, diz.

“Então a gente está desregulando o balanço de energia do planeta: recebemos uma quantidade de energia do sol, mas está saindo menos do que deveria sair, está voltando menos energia pro espaço porque esses gases prendem o calor aqui dentro. Então é como se a gente estivesse colocando diversos cobertores na nossa baixa atmosfera e retendo esse calor, aprisionando ele aqui”.

Ao colocar esses “cobertores”, ocorre o aumento de temperatura da atmosfera, do oceano, e da superfície terrestre – ou seja, o aquecimento global. “E com esse aquecimento nós vamos modificar padrões já conhecidos do sistema: são as mudanças climáticas”, explica a climatologista.

Segundo Ricardo de Camargo, o aquecimento global é motivado pela humanidade. “O que aconteceu nos últimos 150 anos foi uma ação antrópica que levou ao aumento de emissão dos gases de efeito estufa”, explica o professor da USP.

“Esses gases são capazes de reter a energia que a Terra quer emitir para o espaço e isso faz com que a gente tenha um aquecimento gradual à medida que a concentração desses gases se mantém constante ou aumenta na atmosfera”.

E o motivo? De acordo com o professor, as principais causas são ações como a queima de combustíveis fósseis e a mudança de uso da terra.

De acordo com a ONU, geração de energia e eletricidade, fabricação de diversos produtos, uso de transporte e produção de alimentos contribuem para as emissões e, portanto, para o aquecimento global.

Segundo a Análise de Emissões de Gases de Efeito Estufa no Brasil, feita pelo Observatório do Clima, o desmatamento – principalmente na Amazônia – é o principal responsável pelo aumento de emissões de gases do Brasil.

“Se continuarmos como estamos fazendo nas últimas décadas, com a queima de combustíveis fósseis e com a mudança do uso da terra, a gente certamente vai entrar em uma situação ainda mais intensificada do que já estamos começando a ver”, alerta o professor.

Segundo a Organização Meteorológica Mundial, as emissões de CO² cresceram 1% ao redor do mundo em 2022 em comparação com 2021; portanto, é como se o mundo estivesse indo na contramão para impedir o aquecimento global.

“O aquecimento global atualmente está em cerca de 1,2°C comparado com o período pré-industrial, antes da influência humana no clima”, continua Karina. “E com essas mudanças no clima um dos principais efeitos que nós temos é a questão dos eventos extremos”.

Com a terra mais aquente, teremos mais ondas de calor, tempestades e ciclones – todos mais intensos.

Mitigar e adaptar
Se o Brasil é um país tropical por natureza, o aquecimento global pode alterar esse cenário. “A gente tinha a triste ilusão no Brasil, no imaginário coletivo, de não termos furacão”, exemplifica Igor Travassos.

“Agora, temos altas temperaturas, baixas temperaturas, alta intensidade – tudo num período de tempo em lugares que não estão preparados para isso”.

O principal, segundo o porta-voz do Greenpeace, é que os acontecimentos naturais que ocorrem não estão sendo apenas naturais, pois estão potencializados pelas mudanças climáticas – que já estão ocorrendo. Por isso, segundo ele, não podemos naturalizar os desastres naturais.

“[Essa situação também expõe] a falta de preparo nos territórios”, explica, ao citar que precisamos não apenas tentar diminuir as emissões de gases de efeito estufa, conforme foi definido no Acordo de Paris, mas também precisamos realizar uma adaptação.

“Institutos de pesquisa, cientistas e climatologistas já estão alertando sobre a crise climática. (…) Hoje a gente tem que pensar nas duas formas: mitigar e adaptar. Não podemos pensar só na mitigação.

Ricardo de Camargo propõe soluções na mesma linha. “[Precisamos] de mudança da matriz energética, reflorestamento, entre várias ações quando a gente pensa na escala global. Se a gente aumentar o número de áreas verdes, podemos diminuir a incidência direta de radiação no asfalto e no concreto, se gente souber fazer o melhor uso dos nossos recursos hídricos para que isso não tenha uma falta evidente no futuro, por exemplo. Então tem uma série de ações em escala local, regional e até individual. Lógico que uma andorinha só não faz verão, como a gente costuma brincar, mas uma ação coordenada já vem sendo pedida há muitos anos”, explica.

Para lidar com o problema das ondas de calor, por exemplo, Igor Travassos argumenta que uma solução seria a criação de espaços verdes nas cidades para ajudar a equilibrar o microclima.

As respostas precisam ser pensadas não apenas para bairros nobres – como a arborização nos centros urbanos, mas em formas de transição energética que não causem desigualdade ou diminuam a qualidade de vida de pessoas que vivem perto de parques eólicos, por exemplo.

Outro meio é o desmatamento zero, que é ajudado, inclusive, pela demarcação das terras indígenas. Segundo estudo feito pelo MapBiomas, apenas 1,6% da perda de florestas e vegetação nativa no Brasil ocorreu dentro de terras indígenas, enquanto no resto do país a perda foi de 44,6%.

E a solução, ainda segundo Travassos, não pode ser única. “Num país com a dimensão continental como o Brasil tem, cada território convive com as mudanças de uma forma diferente e é impactada de forma diferente”.

Pensar em adaptação tem que ser prioridade pois, segundo o porta-voz do Greenpeace, a gente já está convivendo com as mudanças climáticas. “E o que a gente tá vivendo hoje é a realidade em que pessoas estão morrendo”, explica.

Segundo a Organização Meteorológica Mundial, entre 1970 e 2021, ocorreram pelo menos 11 mil desastres ambientais motivados pelas mudanças climáticas, o que resultou em cerca de 2 milhões de mortes.

“A gente precisa garantir o direito constitucional à vida dessas pessoas. Mitigação e adaptação precisam estar juntas ara que a gente possa talvez reverter o quadro que é urgente. A gente não está falando de uma ficção ou de um futuro. [O aquecimento global] já chegou, já estamos convivendo com isso e as pessoas já estão morrendo por causa da crise climática”.

Fonte: CNN

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *