Cenário de guerra da última segunda (23), mostrado por vários passageiros em vídeos que tomaram as redes sociais, escancara a crise da segurança pública no Rio de Janeiro.
Trinta e cinco ônibus, carros de passeio, um caminhão de lixo, e uma cabine de trem incendiados por bandidos. Esse é o retrato do maior ataque ao transporte público do Rio de Janeiro em um único dia. A reação de bandidos à morte de um miliciano da Zona Oeste durante uma operação policial paralisou boa parte da cidade e gerou pânico na população.
O cenário de guerra da última segunda (23), mostrado por vários passageiros em vídeos que tomaram as redes sociais, escancaram a crise da segurança pública no Rio de Janeiro.
Para a pesquisadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF), Carolina Grillo, os ataques “foram uma demonstração de força de uma das maiores milícias da Região Metropolitana”.
O Fantástico conversou com uma mulher, que preferiu não se identificar, e que foi uma das pessoas alertadas sobre a onda de violência quando ainda estava no trabalho. Aqui, vamos chamá-la de Júlia.
“Era por volta de umas 2h30, 2h40, que uma conhecida minha me mandou mensagens me falando pra eu tomar cuidado. Ela começou a me mandar uma sequência de fotos, vídeos de alguns lugares… de alguns articulados e ônibus pegando fogo.”
“Aí eu consegui pegar o BRT. Quando ele saiu da estação, já falaram: tacaram fogo na Notre Dame. Quando chegamos no Recreio Shopping, ele parou de vez. Peguei o telefone, comecei a ligar pra minha mãe falando: ‘Mãe, eu não sei como eu vou fazer pra chegar em casa'”, contou.
A essa altura, alguns pegavam carona em um caminhão cegonha para voltar para casa. Mas a maior parte dos trabalhadores só conseguia se deslocar a pé – foi o caso da Júlia, que andou quilômetros.
Ela gastou três horas além do normal para chegar em casa, e tinha acordado às 3h da manhã, como de costume.
“Quanto mais a gente andava, mais o desespero batia, porque nós estávamos vendo aquele mundaréu de fumaça.” Não tá passando nenhum ônibus público.”
“A sola do meu pé tava que eu não estava aguentando botar o pé no chão. Consegui pegar uma moto, um mototáxi e quando eu estava quase próxima da minha casa, já veio uma outra situação.”
Ela gastou três horas além do normal para chegar em casa. A mãe a aguardava aflita no portão. Tão aflita que até pediu um abraço ao motociclista de aplicativo em agradecimento por ter levado a filha em segurança até a casa.
“Aí, depois ela me deu um abraço tão quente, tão quente, que eu falei ‘mãe, to segura, to em casa, cheguei.”
Zona Oeste carioca: região dominada pela milícia
Os ataques de segunda aconteceram todos na Zona Oeste do Rio de Janeiro. É uma área que ocupa 70% da cidade, a mais populosa, com mais de 2 milhões e meio de habitantes — é como se 1 a cada 3 moradores do Rio vivesse na região (35%).
A ocupação da Zona Oeste ocorreu nas últimas três, quatro décadas, de forma desordenada. A região tem prédios altos, condomínios de luxo, mas também favelas, e é, em grande parte, formada por construções irregulares e áreas rurais.
A infraestrutura do estado chegou depois da população, o que abriu espaço para que as milícias se instalassem. A primeira milícia foi criada em Rio das Pedras, ainda nos anos de 1980. Na época, cerca de 20 mil pessoas viviam na comunidade — maioria nordestinos que foram para o Rio em busca de emprego, de uma vida mais digna. Agora, são 200 mil moradores.
No passado, as milícias eram grupos formados apenas por policiais, bombeiros – agentes públicos que se apresentavam como salvadores da pátria, capazes de dar proteção aos moradores.
Em troca, o pagamento de uma taxa. Assim, mantinham traficantes e assaltantes bem longe.
“Eles têm um discurso do bem contra o mal. Eles representam a ordem. Enquanto o tráfico representava a desordem. Isso dá uma legitimidade no discurso deles”, explicou Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
E moradores que agiam fora das leis impostas pelas milícias passaram a ser punidos, até mesmo com execução.
“Há um requinte de crueldade inclusive. Não só pelo desaparecimento como também por práticas como decapitação, esquartejamento. Eles disseminam essas imagens entre os grupos e até às vezes como forma de batismo. Para que o integrante passe a fazer parte do grupo criminoso”, disse Fábio Corrêa, coordenador do Gaeco/MPRJ.
As milícias, já instaladas em outros bairros, passaram a explorar também linhas de vans.
“Emprestavam dinheiro. Já vendiam outros tipos de serviço, como gatonet, gás. E quando atravessavam os negócios desses grupos, eles matavam. Houve um período, principalmente relacionado a rivalidades entre donos de cooperativas de transporte, que os assassinatos eram cometidos à luz do dia”, afirmou Manso.
E mais serviços passaram a fazer parte do negócio, como energia e água furtadas de concessionárias.
“Há uma interrupção desse serviço, seja através do chamado gato de luz ou de água para que a organização criminosa passe a fornecer esses serviços em detrimento, em prejuízo às concessionárias do serviço público”, disse Corrêa.
Milicianos também partiram para o ramo imobiliário, construindo e vendendo prédios de forma ilegal. Alguns ruíram e provocaram mortes.
“Eles exerciam um controle dessas comunidades e garantiam votos para parlamentares e políticos. Então eles também tinham um respaldo político muito importante”, disse Manso, o pesquisador da USP.
A Pesquisadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF), Carolina Grillo diz que esse empoderamento se deve ao envolvimento com políticos. “Elas são avisadas com antecedência das operações de fiscalização que ocorrem nessas regiões. E as milícias acabam coordenando os investimentos públicos nas áreas que elas controlam.”
Acordo com traficantes
E não faz muito tempo que traficantes passaram a entrar em negócios que antes eram exclusivos das milícias. Acordos foram selados e a disputa violenta por territórios aconteceu.
Essa associação entre milicianos traficantes começou com a família Braga: três irmãos que não eram policiais, mas que sucederam o comando da maior milícia da Zona Oeste. Luis Antônio da Silva Braga, o Zinho, é o único que ainda está vivo.
Foi a morte do sobrinho dele, o número dois do grupo, numa operação da Polícia Civil que provocou os ataques de segunda-feira.
“O estado tem insistido na ideia de que capturar figuras, lideranças seria a estratégia de como cortar a cabeça de uma organização. Só que essas figuras, essas lideranças, já foram capturadas e mortas tantas vezes e as organizações se perpetuam”, diz Carolina Grillo.
O que diz o poder público
📌 O Governo do Rio de Janeiro informou que as operações da Polícia Civil já resultaram na prisão de mais de 1.500 milicianos e que várias lideranças criminosas foram capturadas e neutralizadas em confronto nos três anos, desde a criação de uma força-tarefa contra as milícias.
📌 Ainda segundo o governo, construções irregulares foram interditadas e serviços clandestinos fechados. Um prejuízo calculado em R$ 2,5 bilhões para as organizações criminosas.
📌 Fontes ouvidas pelo Fantástico afirmam que a grande maioria dos 1.500 presos está em liberdade.
📌 A Polícia Civil foi procurada, mas nenhum representante quis dar entrevista. Em nota, a Polícia Civil disse ter solicitado à Justiça o bloqueio de mais de 235 milhões em bens e valores de milicianos.
📌 O Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizdo do Ministério Público (Gaeco) afirmou que cerca de 350 milicianos já foram denunciados à Justiça.
📌 O governo federal vai anunciar, nesta segunda (30), novas medidas para combater o crime organizado no Rio de Janeiro. E o Exército vai atuar de forma permanente nas fronteiras do Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul para combater o contrabando de armas e drogas.
Apesar dos números, bandidos continuam dando demonstrações de força no Rio de Janeiro. Em menos de um mês, a cidade viveu uma sequência de fatos que mostrou o tamanho da crise na Segurança Pública.
No fim de setembro, o Fantástico exibiu imagens do treinamento de guerrilha de traficantes da facção criminosa que disputa território com a milícia. Onze dias depois, três médicos de passagem pela cidade foram executados por traficantes em frente à praia porque uma das vítimas foi confundida com um miliciano. Agora, na segunda-feira, esse ataque que deixou a polícia sem reação.
Fonte: G1